NICO NARRANDO
Ao chegar na cozinha para atender à minha tia, sou pego de surpresa por um pedido um tanto maligno.- O que você quer, Márcia? As entregas não tão canceladas até o fim de semana? - Dou uma respota curta e grossa para aquela megera.
- Estão sim. Tenho outra tarefa pra você fazer. - Sempre que ela fala isso, me dá até um medo, pois sei que coisa boa não vai ser - Hoje tá vindo uma remessa. Deu um trabalho da porra levar da Bolívia até Vitória, de lá para Brighton e de Brighton pra cá. Preciso de escolta de uma remessa falsa. Enquanto a falsa vai sob escolta no caminhão. A verdadeira vai chegar dividida em vários carros menores. Oito dos vinte carros já vieram. Mas os outros vão vir durante a distração.
- E eu vou escoltar o caminhão? - O serviço perigoso e com risco maior ela sempre dá para o querido sobrinho. Mesmo que ela tenha inúmeros lacaios de vários lugares diferentes para fazer essa parte arriscada. Tem que ser o Nico aqui.
- Não só isso, como vai sabotar os policiais também. - Ela só pode ter endoidado. Vai me meter no meio da Polícia?
- Pera aí. Que história é essa? - Espero que seja brincadeira.
- O irmão do novo atendente é desse grupo de chatos que tá na minha cola. Você sabe disso muito bem já que mora com ele. Meu contato está sabotando as pistolas dos policiais. Mas o tal Hank vive com a arma dele carregada o tempo todo. E justo hoje, que é a entrega e a sabotagem, ele esqueceu a arma em casa. - Já até sei aonde ela quer chegar.
- Quer que eu a pegue antes dele chegar lá?
- Quero que tire as balas do revolver. Ele vai dar falta da arma. Vai pedir uma nova e vai reparar na sabotagem. Se você tirar as balas, ele vai com uma arma inútil pra rua. Já você, Juarez, Luca e Henry estarão armados até os dentes. - Não creio que ela vai me dar essa equipe.
- O Juarez não pode ficar armado contra policiais sabotados. Aquele boliviano maluco vai matar alguém!
- Está com dozinha do policialzinho? Ai, o bebê amoleceu. - Essa maldita ironia dela ainda vai lhe dar problemas. - Não era assim no Brasil. Você fez um serviço valioso pra mim em Belo Horizonte. Tanto que te trouxe para Londres quando precisei substituir o Filho do Matteo.
- Ele tinha nome, sua vaca. Ele se chamava Alejandro! - Fico irritadíssimo pelo modo como tratou o Alê. Ele não era só o filho de um dos atravessadores da Argentina, era um ser humano. Mas não admito também que ela ouse tocar no nome dele.
- Sente culpa? Pelo acontecido? Acha que deveria ter sido você no lugar dele? - Meu sangue agora ferveu. Mas
- Só se eu soubesse o que ia acontecer quando ele botasse o pé na Europa. E ainda tinha aquele maldito Boliviano com ele. Aquele covarde! Ele vai ficar com medo e vai atirar.
- Olha, eu tô pouco me fodendo pra qual policial vai morrer ou não. Mas dá o seu jeito de sabotar a arma.
Ela desligou na minha cara. Aquele vaca! Se eu entregasse ela, também estaria perdido. Mesmo que minha colaboração me inocentasse na Inglaterra, me deportariam para o Brasil ou para a Argentina.
Fico mais um tempinho pensando, e resolvo ir. Dei uma desculpa para Pierre e peguei minha moto. Fui o mais rápido que pude até nossa casa.
É irônico. Moro junto de um cara que é doido para me prender. Ele me busca por toda a cidade, quando estou no quarto ao lado. Além disso, gosto do irmão dele. Ai, Nico! Que confusão é essa em que você se meteu?
Acelero com tudo em direção à casa. Ao chegar na porta, entro no lugar.
- Hank? Fede? - Pergunto por eles e minha voz ecoa na sala. Nenhuma resposta. Ainda não devem ter chegado. Isso facilita as coisas.
Não sei ainda se devo fazer isso. Vai ser mal para o Hank. Um doido como o Juarez poderia facilmente atacar por motivo nenhum só por medo ao ver que estamos sendo seguidos.
Que ódio eu tenho daquele filho da puta. Ele largou o Alê sozinho. E aconteceu o que aconteceu.
Tenho tantas saudades dele.
FLASHBACK
JUIZ DE FORA
2016Eu e Alê ríamos muito. Tinhamos acabado de voltar do circo. Eu sempre fui apaixonado pelo circo. Uma forma única de entretenimento. Os palhaços arrancavam risadas das crianças. Os incríveis trapezistas se jogando para lá e para cá no ar. Mágicas ao vivo!
Mas o que mais me agradava era o Globo da Morte. Naquele circo em questão, eram quatro motos dentro do globo. E além disso, em pé no meio do globo, estava o mestre do picadeiro fazendo sua incrível narração do espetáculo. Realmente nunca vou me esquecer. Não só eu amava o circo, como Alê também.
Os gostos de Alê eram bem específicos, e nem sempre achávamos algo que agradasse nós dois. Mas o circo era um sonho. Ambos amávamos. Saímos correndo um atrás do outro lá fora, e subimos em um pequeno picadeiro que estava de enfeite na parte de fora do circo.
- Você acha que eu daria um bom palhaço? - Alejandro me pergunta enquanto come seu algodão doce. Ele tinha a boca um pouco lambuzada.
- Se você melhorar sua expressão facial, então sim. A face monótona não combina com palhaços. Acho que você daria um bom equilibrista. - Ele se surpreende, mas é verdade. Ele pratica slack-line. É muito bom. - E eu? Acha que eu daria um bom motoqueiro para o globo da morte?
- Você seria o melhor motoqueiro do mundo. Tenha certeza disso. - Ele diz, e me dá aquele seu sorriso exageradamente grande, mas perfeito.
Continuamos a andar de mãos dadas pelo parque onde o circo estava. Então surgiu o assunto.
- Nico, você já pensou em beijar um homem? - Veio muito de repente isso pra mim. Foi um verdadeiro susto. Será que ele descobrira que eu sou gay e por isso está me perguntando?
- Por quê? Você beijaria?
- Você é meu melhor amigo. Acho que seria bom te contar. Já faz um bom tempo que sinto o desejo de beijar outro homem. Mas tenho medo.
- Medo de quê?
- De muita coisa. De não ser correspondido. De que as pessoas não gostem.
- Elas não tem que te aceitar. Você tem que se aceitar. E saiba que independente da sua orientação sexual, você é meu melhor amigo. - Eu e ele nos abraçamos bem rapidamente. Afinal, Alê não gosta de abraços. Ele se sente muito espremido.
- Acha que sou gay ou bi? - Ele me pergunta inocente.
- Você já bateu punheta? - Talvez eu tenha sido bem direto e sem nenhuma polidez, mas não tem problema. Alejandro não se constrange facilmente.
- Já sim.
- E pensava em homens? Em mulheres? Talvez em ambos? O que fez o seu pau subir? - Vou bem direto ao ponto com as perguntas. Sem muita enrolação.
- Só os homens. Nunca me interessei em uma mulher em específico.
- Por um homem em específico já? - E se meu amigo tiver um crush? Melhor que ele me conte para eu aprovar. Não vou deixar meu irmão, meu brother, sair com qualquer um.
- Sim.
- Por quem? - Sinto meu rosto corar enquanto pergunto.
- Por você. - Ele fala isso, e então acaba com o espaço entre nossas bocas. Ele me dá um beijo bem doce e gostoso. Eu retribuo. Levei minhas mãos a seu tórax e o puxei mais pra perto. Ele desceu as mãos dele para meu quadril e abertou minha bundo. Nem um pouco discreto. Quando o ar se fez necessário, nos separamos.
- Alê, acho que você é gay.
- Nico, acho que você também é... Ah! Meu algodão doce!
Ele esqueceu do algodão doce na mão quando a levou até minha cintura. Minha calça estava suja e o doce estava esmagado. Rimos bastante e fomos comprar outro algodão doce.
FIM DO FLASHBACK
Estou na porta do quarto de Hank. Não sei se devo, mas é agora ou nunca.
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EPIFANIA
RomancePierre é confuso. Nem ele se entende. Atormentado por algo que nem ele mesmo lembra, sua vida é dividida entre a tristeza e a raiva. Com dificuldades seríssimas para confiar em alguém, ele não tem amigos. Até ir morar com mais três homens bem difere...