4. mas mesmo assim

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Estava a noite. Era a primeira vez que saia do quarto branco, o Filho da Ferreira estava totalmente assustado, não conseguia falar, ninguém nunca lhe ensinou, afinal, ele se agarrava a Ferreira, que lhe carregava no colo como uma mãe faria. Com tanto carinho, passava suas grandes mãos nos cabelos longos de seu filho, tentando acalmar o garotinho inocente que tanto estremecia em seus braços.

Olhava Santo Berço com tanto medo, apreensivo quando percebeu que sua existência não era apenas o símbolo. Que o universo não era o símbolo e que havia muito mais coisas além do símbolo. Até mesmo as vestimentas recém colocadas em si eram estranhas e lhe causavam uma sensação ruim.

Nem conseguia pensar direito.

Estava chorando baixo, tremendo de pavor, ainda digerindo como era o mundo fora do símbolo. O símbolo. Sentia falta do símbolo. Queria voltar para perto do símbolo.

Era só uma criança de oito anos com medo e confusa.

[...]

Estava fora do quarto branco ao que seriam uma semana e meia, não havia saído de casa ainda, em algum momento se tornou próximo do Ajudante da Ferreira quando viu o símbolo no peito dele.

Estava começando a se acostumar com a existência de coisas além do que havia no quarto branco. Mas ainda era ruim.

Desenhava com o giz que ganhou de presente, o mesmo símbolo, várias vezes, nas paredes e no chão, talvez se fosse mais alto faria isso até no teto. Tinha um caixote inteiro ao seu lado com o giz, para que não começasse a usar o próprio sangue. 

Ferreira lhe deu com o intuito de fazer o pequeno desenhar as coisas que via, o coração dela se apertava quando ele apenas repetia o símbolo várias e várias vezes. Mas ela sabia que não tinha o que fazer sobre isso, seu amado filho estava conectado ao símbolo. A loira nunca se arrependeu tanto de ter colocado a criança naquele quarto branco, naquela cela.

— Filho... — Ela abria a porta do quartinho dele, vendo uma criança toda suja de um pó branco, era o pó do giz. Se aproximou dele, se ajoelhando ao seu lado, pegando um pedaço de giz. — Sabe o nome disso? — Ela sorria, cheia de ternura pelo garotinho.

O dos fios negros não sabia falar quase nada, apenas balbucios e algumas sílabas soltas incompreensíveis, então apenas parou de desenhar para encarar sua mãe. Uma feição confusa com seus olhos negros entre-abertos, tentando entender o que ela estava falando.

— Giiiiz. — Ferreira disse, esperando que a criança juntasse os pontos, seu sorriso cresceu quando o menino chegou mais perto dela.

Ele tocava suas grandes mãos com curiosidade, prestando atenção no giz, seus olhos alternavam o foco entre ele e o rosto de Ferreira. O Filho da Ferreira comprimia os lábios, alguns sons adoraveis eram soltos, estava tentando falar.

— G‐z — Tentou pronunciar "giz". Não conseguiu falar direito. 

— Isso, meu bebezinho, giiiz. — Ferreira sentia seu coração esquentar ao olhar para a criança, ele era absolutamente perfeito, suas marcas de luzídio tão fofas, a sensação de amor materno crescia a cada nova feição ou emoção que seu garotinho aprendia, demonstrava, qualquer coisa. Amava seu filho.

— G-g-z. — Voltava seus olhos grandes para sua mãe. — G-iz, gi, gi-z, giz...

A loira não conseguiu segurar o choro, o pequeno havia dito sua primeira palavra, mesmo que fosse giz, o abraçou, puxando a criança para seu colo. Enquanto ele repetia o que havia aprendido agora a pouco.

— Sim, meu amor, giz! 

[...]

Depois de dois dias após o evento do giz, Ferreira tentava ensinar outras palavras a ele, até ele não conseguia dizer algumas sílabas ou letras. Mas ela sentia um progresso.

— Fala comigo, assim ó — Colocava sua criança em cima do balcão da ferraria, afastando os objetos afiados, prevenindo que seu bebezinho se machucasse com as grandes armas. — mamãe!

— Giz — O Filho da Ferreira disse a única palavra que conseguia pronunciar de maneira totalmente correta, o Ajudante, que estava ali também, não conseguiu conter um riso com a ffeição cômica de Ferreira.

— Não não não, mamãe.

— Giz.

— Mamãe.

— Giz.

Neste ponto o Ajudante já estava chorando de tanto rir. Ferreira revirava os olhos enquanto permitia que um sorriso aparecesse em seu rosto. Fez cafuné nos fios negros da criança.

— De novo — Ela pegou o menino no colo, encostando no balcão. — Ma... — Ele parecia ter começado a prestar atenção em si, já que colocou as pequenas mãos no rosto da mãe. Os olhos negros vidrados nela, sem reação alguma. — mãe...

— Ma-m-m — Tentava repetir o que escutou, Ferreira encarava-o com uma expectativa imensa. — Ma-ma...

— Mamãe...? — Repetiu mais uma vez a Ferreira.

— Mamãe... — Ele conseguiu

A Ferreira girou seu filho no ar, ela nunca havia ficado tão feliz ao ouvir uma palavra como estava agora. 

[...]

Ajudante estava do outro lado da ferraria, com os braços abertos, Ferreira segurando o filho deles para o ensinar a andar em pé. Os passos lentos e trêmulos do garoto que futuramente seria Porteiro eram a coisa mais linda que aqueles dois já haviam visto.

Ele parecia concentrado, depois de 2 semanas já conseguia falar mais de cem palavras e isso era um enorme avanço. Os desenhos dele já não eram apenas o símbolo e sim o que ele via dentro da casa, assim como desenhos de sua mãe e seu pai. Desenhos adoráveis e com aquele traço infantil que faziam o coração de Ferreira derreter. 

— Vem pro pai vem — Ajudante dizia, prestando atenção no garotinho, pronto para lhe segurar quando ele chegasse perto o suficiente. 

O Filho da Ferreira tropeçou mesmo sendo segurado pela loira, a criança não conseguiu evitar começar a chorar por ter ferido seu rostinho.

— Foi só o susto, foi só o susto — Ajudante foi correndo pegar a criança no colo, a acalmando, passando sem força uma das mãos na região avermelhada. Logo deu um olhar de repreensão para Ferreira. — Na próxima vez eu seguro ele.

— Foi um acidente! — Se defendeu.

[...]

Porteiro acordou em um susto, talvez mais por ter sonhado em Santo Berço do que verdadeiramente pelo conteúdo no sonho. Isso nunca acontecia, não nesse lugar, e não tinha a mínima ideia do motivo. 

Parecia mais uma memória sendo repassada em sua mente do que verdadeiramente um sonho. Em algum momento Porteiro estava pensou que preferiria ter ficado naquela sala junto ao símbolo, quem sabe sua vida fosse menos trágica.

Sorriu, quando parou para pensar no que deveria ser um sonho. Aquela época era engraçada, talvez boa. 

Porteiro sentia mesmo que minimamente, falta de sua mãe.


amável escape - OSNFOnde histórias criam vida. Descubra agora