1.que me fazia esquecer

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Ele tocava o sino de Santo Berço, seu olhar era tão cansado e melancólico que poderia contagiar os outros a sua volta. Mas esse era o ponto da dívida, que não tinha ninguém ali para lhe encarar.

Se sentia tão desgastado, era sempre assim quando lhe lembravam que vivia em Santo Berço.

"Aqui é um lugar feliz" 

Não é, Porteiro odiava ter que falar isso para os Ignaros. Essa mentira nojenta.

[...]

Porteiro se segurava para não desenhar o símbolo ali mesmo na taverna, estava longe dele e se sentia horrível por isso. Era uma sensação horrorosa e deprimente, a forma como sua cabeça doía, sua mente prestes a rachar e se estilhaçar em mil pedaços. Mantinha seus olhos negros sobre seu copo de água na água enquanto ouvia as risadas e gritos dos outros luzídios, nesse momento tudo que desejava era ser como eles, um ignorante. 

Em especial, havia um luzídio que lhe captava a atenção, Hoteleiro, que puxava conversa com a garçonete enquanto aproveitava dos alimentos de Santo Berço.

Porteiro nem sabia e nem queria saber por que tinha tanta vontade de falar com o grisalho, ele não era diferente dos outros moradores de Santo Berço, infelizmente uma vítima, diria. Nunca nem sequer trocou palavras com ele que não fossem algo relacionado aos novos ignaros recém-chegados ou os cumprimentos amigáveis que dava para todo mundo.

Sentiu sua cabeça doer mais uma vez, colocou as mãos nos cabelos escuros, puxando-os com uma força preocupante, arrancando alguns fios, nem chegou a terminar de comer para ir até a torre, Porteiro definitivamente não estava com fome, ele só queria voltar ao seu ninho de papéis. Estava já de pé indo em direção a porta.

De repente tudo ficou preto por alguns segundos, colocou sua mão na cabeça mais uma vez, tentou olhar para o lado e sentiu as mãos de alguém lhe segurando. 

— Porteiro? Tá tudo bem contigo? — Reconheceu como a voz de ajudante, seu melhor amigo, se esforçou para levantar o olhar para o encarar. Nervoso com o fato dos luzídios estarem observando a situação, mesmo que seu desequilíbrio só tenha sido causado pela falta de uma alimentação regulada, Porteiro estava tão desgastado que nem ao menos conseguia manter uma boa rotina alimentar. Ao menos boa o suficiente para lhe manter de pé. — Porteiro?

— Ah, oi! Eu tô bem sim! Não precisa se preocupar comigo. — Saiu dos braços fortes do amigo para voltar a compostura, decepcionado por ter que ir novamente ao fingimento. 

Tentou focar seus olhos negros em alguma coisa, conseguiu distinguir a feição confusa de Hoteleiro lhe olhando do meio do bar. Em meio ao rosto do grisalho, um monte de outros luzídios tentando compreender melhor a situação.

— Tem certeza? — Ajudante desviou o olhar para o sanduíche no sanduíche que estava intacto no prato de Porteiro. — Você não tá comendo direito de novo? Aqui é Santo Berço! Como consegue não comer aqui?

Porteiro sentiu com as palavras do amigo, se existia alguém que amava o lugar que morava mais que Ajudante, ele desconhecia. Isso que lhe fazia ir mais fundo no poço, nunca poderia contar para ele. 

— Sim, só estou sem fome — Colocou um sorriso no rosto. — Tá tudo bem, eu tô bem.

— Que tal você só comer um pouco do sanduíche no sanduíche? — O de barba insista, mas definitivamente não estava com vontade de provar da perfeita e absolutamente nojenta comida de Santo Berço.

— Não preciso, eu tô bem. — Deu um tapinha nas costas do mais alto antes de andar para sair da taverna, deixando um Ajudante preocupado e levemente desconfiado para trás.

[...]

Porteiro seguia em direção a própria torre em passos calmos, dando um amigável "bom dia" para cada morador que encontrava em seu caminho. 

Abaixou a cabeça quando encontrou o Ferreiro, seu pai:

— Bom dia, Ferreiro. — Juntou as mãos, apressando seus passos. 

— Bom dia, filho. — Porteiro sentiu ansia quando ouviu Ferreiro lhe chamar assim, tinha nojo de ser filho dele. Em algum momento seus passos de tornaram mais rápidos, mais longos, mais pesados, parecia um animal fugindo de um predador, e apesar de não ser exatamente aquilo, era assim que Porteiro enxergava as coisas.

Afinal, talvez para Ferreiro ele não passasse de um animal.

Quando cortou caminho para chegar até a sua torre, foi até o segundo andar carregando lençóis, se enrolou neles para tentar sair um pouco do clima perfeito de Santo Berço, era triste a forma como ele queria a todo custo se afastar de todas essas regalias que esse lugar lhe oferecia. 

Olhava para a janela, procurando novos pássaros para desenhar, tinha que admitir que a fauna da cidade era belíssima, ele dedilhava o chão atrás de papel e caneta, não desviando o olhar da árvore que chegava a ser tão alta quanto a torre, caçando com os olhos uma nova espécie. Até que Porteiro teve sua atenção desviada quando sentiu alguém lhe cutucar o ombro:

— Ajudante?! — Disse, pelo aparecimento repentino do barbado, havia se assustado.

— Porteiro?! — O outro também gritou, não conseguiu distinguir se era por ter levado susto pelo fato de ter lhe assustado ou se estava apenas zoando com sua cara.

amável escape - OSNFOnde histórias criam vida. Descubra agora