CAPÍTULO 3

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Capítulo 3

A tenda era vermelha por fora e por dentro. Descobri quando empurrei os panos para os lados e entrei, tentando parecer calma. Completamente vermelha, acrescentei mentalmente quando meus olhos varreram o local com mais foco. A toalha de mesa, a roupa de Morgana, o batom, suas unhas. E a cadeira na qual sentei-me de imediato. Sem perder tempo, a cigana começou a embaralhar as cartas.

Fiquei enrolando meus cachos na ponta do cabelo, tornando-os mais intensos. Era uma mania que sempre retornava quando me sentia apreensiva. Ela dispôs o monte de cartas na minha frente e pediu que eu separasse em três. Avisei que queria saber apenas sobre o âmbito profissional, e Morgana concordou sem reclamações ou hesitações. Parecia doutrinada para dar aquilo que lhe pediam. Virou cada carta de cima dos três montes criados por mim e me encarou.

— Preciso do dinheiro antes de interpretar as cartas para você.

— Claro. — O dinheiro já estava no bolso da minha calça, separado. — Desculpe.

Coloquei as duas notas sobre a mão parda da cigana quando subitamente um mal-estar dominou meu corpo. Ela era uma completa desconhecida, no entanto, mesmo assim, agarrei sua mão evitando minha queda da cadeira. Os dedos de Morgana se fecharam com força sobre os meus, como se não fosse me permitir escapar nunca mais. E o seu comportamento me fez preferir cair, contudo, havia algo mais forte ali. Perdi a lucidez.

Podia ver mais uma vez as chamas do meu pesadelo ao meu redor. Elas lambiam panos vermelhos com sofreguidão. Meu corpo suava muito, como se eu fosse aqueles panos. Escutei gritos. Muitos gritos. Uma mão se posicionou sobre a minha, sobre a de Morgana, e nos separou. Caí no chão. Mas eu não estava enxergando nada de verdade. Eu apenas via as chamas, como se eu as amasse.

— Ela é uma bruxa — era a voz da Morgana em meio a uma tosse forte. — A herdeira — completou e, em seguida, eu ouvi o seu grito. Estridente.

Escutei seu choro angustiante enquanto repetia para si mesma que não sabia de nada, que não queria morrer, que protegeria o segredo. Senti braços fortes pegarem o meu corpo inerte e me carregarem por alguns metros. Eu ainda via apenas as chamas, contudo, eu as via subindo pelo corpo de Morgana, matando-a.

***

Senti uma água escorrendo pelos meus lábios e abri a boca rapidamente, tentando bebê-la. Passei a língua e um alívio inundou minha garganta seca e dolorida. Morgana. Abri os olhos. E os dele não eram azuis como no sonho; eram da cor do outono, das folhas alaranjadas que cobriam o portal da festa, olhos como eu nunca havia visto.

— Onde estamos? — Sentei-me com pressa e logo constatei que ainda estávamos no parque, apesar de ele estar praticamente às moscas.

— Pensei que sua primeira pergunta fosse ser quem é você. — O dono dos olhos de outono sorriu de forma simpática. — Houve um incêndio na tenda da cigana e eu encontrei você largada aqui na grama. Os bombeiros já contiveram o fogo, mas a maior parte das pessoas foram embora com o susto. Na verdade, ordenaram que fossem.

— E por que você ficou? — Muito altruísta, pensei em completar, mas não quis parecer ingrata.

— Geralmente as pessoas não acreditam mesmo na minha capacidade de ajudar os outros.

Não. Não podia ser. Aquele cara na minha frente tinha o mesmo dom compartilhado entre eu e minha avó? Ler os pensamentos? Ok. Sei que pareço uma aberração vendo o futuro através de sonhos, lendo as mãos das minhas amigas e lendo pensamentos. No entanto, você precisa entender que eu fui criada assim. Desde pequena, minha avó falava:

"Todos temos dons. A diferença entre todos e você é se vai exercitá-los ou não."

E ela me ajudou a trabalhar em cada um dos dons que descobríamos em mim. Minha avó era como uma amiga para mim, e eu nunca superaria a sua partida, a sua ausência física na minha vida. Ler pensamentos é como ler a linguagem corporal. Nós nem percebemos, mas entregamos tudo que pensamos nos movimentos de nosso corpo. E após anos e anos praticando, havia me tornado profissional na leitura dos outros, ao ponto de quase ouvi-los sussurrar na minha mente. Ao ponto de eu me assustar e achar que podia não ser apenas um dom ou uma habilidade trabalhada, que podia ser algo sobrenatural.

— Sinto muito. Eu não queria ter sido tão... — Sincera? Direta? Objetiva? Eu nem havia falado...

Natural? — o rapaz sugeriu, encarando-me fixamente, como se não se importasse nem um pouco com a minha desconfiança a respeito dele.

— Sim — balbuciei, um pouco desconcertada pela precisão com que definiu minha atitude. Sua habilidade era melhor que a minha, pelo visto. — Alguém se feriu? Eu tenho uma vaga lembrança de a cigana ter se queimado. — Procurei minha bolsa, mas ela havia sumido na confusão. Levantei-me, percebendo que ainda estava sentada na grama de frente para o rapaz que eu não sabia o nome.

— Ela morreu. O fogo pegou quase todo o corpo dela. — Levantou-se também, ainda mantendo os olhos em mim.

Pode parar de me olhar desse jeito? Imediatamente, ele sorriu como quem mata uma charada e olhou para o lago que rodeava o parque. Sério. Eu me imaginei comentando sobre a leitura de pensamentos, mas me policiei a tempo.

— Olha, sou eu quem deve pedir desculpas. — Ele estendeu as mãos largas em sinal de paz. — Sei que a estou deixando confusa, Kate...

Pare. Volte duas casas.

— Eu não me apresentei. Como pode saber meu nome se estou há todo esse tempo pensando em você como rapaz desconhecido? — Cruzei os braços, encarando-o seriamente.

— Pediram que eu viesse encontrá-la. — Ele se aproximou mais um pouco e estendeu a mão na direção do meu rosto. Eu estava pronta para lhe dar um tapa, para afastá-lo de mim, quando seus lábios se abriram: — Você é neta de Júlia West, e eu preciso levá-la até uma pessoa.

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