2. Vida

757 210 30
                                    

Vida

Os cânticos e rezas da Trezena de Santo Antônio ainda retumbam na minha mente, numa cadência arrastada e triste. As vozes abafadas das mulheres de mãos calejadas e faces marcadas pelo sol devido à lida no campo me fazem recordar de que sou uma prisioneira.


Conheço da vida dessas mulheres, pois sou uma delas.


Talvez se eu tivesse permanecido como uma camponesa, uma trabalhadora braçal, estivesse sendo mais feliz, mesmo com todas as incertezas e durezas dessa vida, em que o maior sonho é ter a garantia das três refeições.


Pode parecer até ofensivo às mulheres, crianças e idosos que nem sempre têm acesso a uma vida digna, no entanto, viver no conforto que usufruo é uma prisão de medo e dor. Não é pelo fato de Sampaio ser tão mais velho que eu, pois a nossa diferença de idade é de 33 anos, mas é pelo jeito com que ele me trata.


Olho o meu reflexo no espelho e termino de me arrumar com má vontade. Após a trezena, voltei para casa e coloquei Camila para dormir na esperança de que Sampaio se esquecesse de mim. Mas logo veio o recado por meio de Salatiel, o seu fiel escudeiro.


— Coronel Sampaio mandou dizer que a senhora tem 15 minutos para aparecer na pracinha da festa — o rapazote da mesma idade que eu, 22 anos, me avisou há pouco.


Sem muito interesse, checo a calça jeans escura e a camisa rosa-bebê com um nó na cintura, que uso com um par de botas de cano médio. Passo um batom rosa e lápis preto nas pálpebras. Meu biotipo é de uma pessoa do sul do Brasil, tenho olhos verdes e não puxei a minha avó e mãe.


— Acho que na família do meu pai tem descendente estrangeiro, tipo europeu — disse a Sampaio certa vez.


Ele gargalhou como se eu tivesse contado a piada mais engraçada do mundo.


— Sangue europeu em tu, Viridiana? — questionou com sarcasmo. Ele é uma das raras pessoas que às vezes me chama pelo meu nome de batismo. — Se olha no espelho, Vida. Não possa de uma pobre coitada, filha de uma rameira, que transformei em princesa.

— Me refiro a cor de meus olhos, Sampaio, e ao tom da minha pele. Não tem gente assim na família de minha mãe, sabe bem.


Ele se aproximou sorrateiro ainda relinchando como um cavalo.


— Filha de puta não tem pai, Viridiana. Tua mãe é uma vagabunda — ele sussurrou em meu ouvido. — Na tua certidão de nascimento está escrito "pai desconhecido", ou seja, tu é filha de qualquer um, e qualquer um é o mesmo que ninguém.


Aquelas palavras me machucaram. Pareciam uma faca de açougue estraçalhando o coração. Assim é Sampaio, um de seus passatempos prediletos é me humilhar. Mas, naquele dia, não me fiz de rogada.


— Eu tenho pai, sim. Eu só não conheço ele, apenas isso. Minha mãe me contou que ele é caminhoneiro — rebati. — Não me ofenda assim.

— Não estou ofendendo, falo a verdade. Vou dar um jeito nesse seu atrevimento qualquer dia — ele me ameaçou com brutalidade e se afastou.


MEU ÚNICO PECADO - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora