Dia 48

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Hoje faz 2 dias que estou trancada em casa. Tenho medo de sair e ser agredida, tenho medo de me verem e me xingarem até a quarta geração, pela primeira vez em anos, tenho um medo paralisante de viver nessa cidade.

Eu não faço ideia de como isso aconteceu, mas, aparentemente, a cidade toda está me culpando e querendo justiça pelo assassinato das 3 garotas. Sim, eu moro perto do local, não lembro o que fiz na noite dos assassinatos e meu celular foi encontrado na pracinha, mas só isso é suficiente para me jurarem de morte? Eu não acredito que seja. Tem casos piores nas grandes cidades em que, muitas vezes, os verdadeiros culpados saem livres dessa, não acredito que minha vida vale menos do que a deles.

Minha cara está estampada na Conect News, site de notícias local que mais parece um site de fofocas, ao lado de uma matéria que relata o ocorrido:

A CIDADE SIMPATIA NÃO É TÃO SIMPÁTICA ASSIM: CRIME BÁRBARO OCORREU NA MADRUGADA DE SÁBADO

Na madrugada deste sábado (8), foram encontrados corpos de 3 garotas, com idades entre 20 e 25 anos, em uma casa abandonada no bairro Recanto Feliz. A polícia militar identificou os corpos pela manhã como sendo Esther Silva, Rúbia Meneghesso e Camila Alves. Foi encontrado um aparelho celular pertencente a Bruna de Souza jogado perto do local do crime. A Conect News tentou entrar em contato com Bruna de Souza, mas não obteve respostas.

Parece que a cidade simpatia não é tão simpática assim quando se trata de jovens mulheres, não é mesmo?

A questão que não quer calar é: Qual foi o motivo de um crime tão bárbaro? A falta de respostas por parte da polícia enerva a população, que vai em busca de justiça para as jovens.

Saio do site antes que apareçam as fotos dos corpos, não consigo ver sem ter vontade de vomitar. Ainda não acredito que fiz algo desse tipo, como a polícia diz que fiz. Respira, Bruna, eles não têm provas suficientes para te prender.

Abro o perfil falso que criei no facebook após o meu se tornar lugar de linchamento público, procuro Esther Silva: o perfil virou um memorial, nos últimos dias só há publicações lamentando sua morte e algumas jurando encontrar o responsável. Na foto de perfil, Esther está sorrindo, como se não tivesse nenhuma preocupação na vida, seu cabelo preto voa e cobre parte do rosto branco. Na seção Sobre descubro que ela frequentou a Zambello, que estava em um relacionamento sério e tem, não, tinha, 23 anos. Nas fotos de destaque tem uma criança fofa junto com ela, pode ser irmã. Ou filha. Na biografia tem a frase "vivendo cada dia como se fosse o último", o que acho uma cruel ironia, já que o último dia dela chegou, e, a última coisa que reparo, a música fixada no perfil, Avisa Que Eu Cheguei, da Naiara Azevedo. Será que ela usou essa música para entrar seja lá pra onde a alma dela tiver ido?

Passo para o próximo perfil: Rúbia Meneghesso. Uma coisa estranha que tem no interior é que sobrenomes que parecem "chiques" geralmente são chiques ou pertencem a tal elite-que-frequenta-as-escolas-particulares da cidade, nesse caso minha linha de pensamento está certa. Rúbia atualmente faz Direito na Universidade Mesquita, uma das melhores da região, que provavelmente entrou depois de frequentar 3 anos de cursinho pré-vestibular. As fotos de Rúbia parecem todas saídas de um ensaio fotográfico, ela está tão magnífica nelas, como uma modelo riquíssima que casualmente volta para a querida terra onde nasceu para passar as férias e relembrar as origens. Não tem a data de aniversário no perfil, descubro depois de algumas pesquisas que ela tem, não, tinha, 20 anos, tão jovem...Pelas publicações, eu até poderia ser amiga dela, algum dia...

Volto para a barra de pesquisa e procuro o último perfil: Camila Alves. Esse nome me soa familiar, será que eu conhecia de vista ou por alguma fama? O perfil dela não tem foto, quer dizer, tem uma foto de silhueta, aparentemente feminina, e é só. Nenhuma informação a mais, só a foto de silhueta. Como eu vou saber se a conhecia?

Pensando friamente, elas não tinham o menor vínculo em comum e não tinha os mesmos amigos, então a chance das três estarem no mesmo lugar ao mesmo tempo é mínima. Eu também não me vejo frequentando os lugares que frequentam, com bebidas e bêbados, como eu poderia tê-las encontrado?

Acabo concluindo que eu não sou capaz de matar uma mosca sem me sentir mal. Como diabos eu poderia ter assassinado 3 garotas ao sangue frio e não sentir nada depois? Eu, definitivamente, não fiz isso.

Quando estava pronta para fechar o perfil de Camila, aquela sensação ruim surge de novo e, dessa vez, traz consigo uma lembrança: Eu estou dentro da casa abandonada, procurando um jeito de sair, meu celular está iluminando o caminho. O medo de ser pega dentro da casa me paralisa por um instante, até que acho o portão lateral pelo qual entrei. Quando abro o portão percebo que minhas mãos estão com sangue, mas não dou muita importância porque precisava encontrar algum lugar para esconder o celular. No caminho para casa, ando olhando para os lados, como se estivesse me certificando de que não estava sendo seguida. O coração quase saía pela boca quando passei pela pracinha onde costumava brincar, deixei o celular em uma moita e segui para casa, aliviada. O resto da lembrança fica turvo e não consigo lembrar mais nada.

A lembrança balança forte minha antiga inocência e pela primeira vez considero a possibilidade de ter cometido três assassinatos.


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