dancing with the devil

03

Mesmo com a pesada chuva, a lua ainda brilhava forte no céu, como se não se importasse com o choro compulsivo das nuvens. E suas lágrimas caíam e molhavam as flores, as árvores, a grama, servindo de vida para estas. Muitos amam tempos assim: chuvosos, carregados, mas para Agust estes são os piores. São nesses momentos em que as pessoas mais ficam dentro de casa, o que dificulta um pouco o trabalho dele. Não é engraçado como algo que traz paz para uns pode trazer complicações para outros? Sentado no parapeito de um prédio, esperando seu alvo sair de casa, ele sentia as gotas caírem como agulhas na sua pele. E por mais que não gostasse de chuva, ele estava gostando daquele momento, um pouquinho de paz em meio ao inferno em que ele vive. Literalmente. A chuva foi diminuindo até parar, ao passo que o sol nascia. Ele olhou para o prédio à frente e esperou pelo seu alvo. Entretanto, algo o chamou a atenção: uma mulher ruiva o encarava da janela, ele a encarou de volta. Ela desviou seu olhar por apenas um segundo, o suficiente para ele ficar invisível. Geralmente, é ele que permite se as pessoas o veem ou não, digamos que é como um botão o qual ele aperta e torna-se visível aos vivos. Porém, este botão precisa estar pressionado para que ele possa tocar as coisas. Isto o obrigou a criar uma espécie de identidade, com um nome, uma casa, etc. Normalmente os anjos não precisam desse "botão", mas ele perdeu esse poder quando foi expulso do céu. A mulher fechou a janela, mas todo este tempo o fez perder o alvo, então ele teve de segui-lo e pular de um prédio para o outro. Assim que o homem parou na esquina para comprar café, o rapaz preparou a flecha e, sem hesitar, acertou as costas dele, que cambaleou um pouco e foi ajudado por alguém que passava. Os dois se olharam, mas apenas um dos corações sorriu. E, assim, surge mais um amor desigual, platônico, não-recíproco. Agust respira satisfeito. Sua missão foi concluída com êxito. Mas agora ele tem que partir para a próxima.

Ser cupido nunca foi fácil. É algo que exige, além de muita precisão na hora de atirar, muito comprometimento para realizar os trabalhos, pois se um alvo não é atingido, pode afetar a história de uma cidade inteira e mudar o curso de n coisas. Antes era divertido, mas com o passar dos séculos, ele foi perdendo o interesse e, atualmente, é como um trabalho humano. Sendo assim, ele aprendeu a valorizar os intervalos entre as missões. Neste meio tempo, ele passeia pela terra e age como humano, mas sem se entrosar muito com os humanos, por causa da lei. A lei, algo que mais odeia em todo o universo. Algo que acredita ter destruído quem ele era.

Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos sobre o passado, mesmo sabendo que era inútil. Tentou focar no presente e não pensar no futuro.

— Tenho que fazer algo de útil. — Disse para si mesmo e quando desceu do prédio, avistou a mulher ruiva que o viu minutos antes.

Sem pensar muito, ele começou a segui-la. Só queria ver para onde ela estava indo. Pelas roupas, parecia estar a caminho de um lugar sofisticado. Agust observou os detalhes da moça. O cabelo era ruivo vivo tal qual o fogo, liso até metade, formando cachos não muito definidos, distribuído generosamente pelos ombros. Ela entrou em um ônibus e ele entrou junto, agora poderia vê-la melhor. Ela tinha lábios rosados, cobertos por uma espécie de gloss que os faziam brilhar. A pele clara revelava sardas delicadas e bochechas rosadas do frio da manhã. Ela era linda. Mas ele sentia que ela era diferente dos outros humanos daquele lugar. Era como se ela emanasse uma energia diferente que a destacava dos demais. Ele não sabia o que era, mas iria descobrir.

— Sabia que é desrespeitoso encarar assim, anjinho? — Ele olhou para o lado e percebeu que uma senhora idosa sentava lá. — Principalmente uma coisa que a lei afasta você.

— Como é? — Ela estava falando da lei dos demônios? Ele estava confuso, pois quando um ser não-humano está perto, ele consegue sentir, mas ele não sentia nada vindo daquela senhora. — Você tá bem?