Modorra

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Lagarteando ao sol do início da tarde em mais um dia de isolamento. Numa vã tentativa de ler textos acadêmicos sob o calor escaldante de uma calça de moletom e uma camiseta de algodão, não consigo evitar: a modorra me domina. 

Adormeço e sonho o que não sonhei na noite passada. Nos últimos dias, estive em uma cadeia, em uma floresta, na praia e até mesmo no Inferno. Mas a fechadura do portão parece enferrujar mais a cada dia que passa, sucumbindo à falta de uso e acorrentando-me à minha própria existência. 

Coincidentemente, talvez, o ronronar constante do motor da piscina me leva a um certo sítio no interior de São Paulo. Há mais de 10 anos ouvi falar pela primeira vez do poder da modorra, quando uma garota de narizinho arrebitado como eu adormeceu ao lado de um riacho no pomar. A partir daí, insetos falaram, aranhas costuraram, peixes reinaram, sapos clinicaram e bonecas falaram.

A modorra sempre me encantou, rendendo até mesmo umas queimaduras de sol na minha pele excessivamente branca. Mas nunca me arrependi, sempre buscando uma epifania que me transformasse como transformou Lúcia. 

Hoje, no fim da juventude, continuo buscando a modorra como refúgio para pensamentos que às vezes se tornam insuportáveis demais. e é numa epifania modorrenta, na qual não estou nem acordada nem dormindo, que me vem a inspiração. 

Nada.

Queria fechar o texto com uma lição de moral, ou uma conclusão incrível a respeito da arte. Peço perdão, Sr. Esopo, mas não creio que será esse o desfecho.

Dissociações da vida privadaOnde histórias criam vida. Descubra agora