Você tem o direito de permanecer calado

19 0 0
                                    

Trinta e oito graus celcius de um verão que ainda não tinha chegado. Os quarentões ventiladores de teto girando ruidosamente. A delegacia vazia. Não, vazia não. à segunda vista, era possível identificar um sujeito na porta do saguão. Um garoto. Não devia ter mais de 20 anos, aquele tipo. Calça de brim rasgada porque velha, não era uma dessas que a gente vê por aí hoje em dia, detonada de propósito pra seguir moda. Era daquelas que eu tinha na adolescência, 100% brim, sem mistura, tão dura que a gente nem passava. Camiseta de manga curta, gola simples, azul marinho. Não, não era azul, era preta. Devia ter a mesma idade da calça, pelo jeito que estava desbotada. Cabelo sem pentear, bigode por fazer. Uma sombra de costeletas despontava ao lado das orelhas que talvez fossem um pouco grandes demais. Claro, para completar o conjunto estava lá o All Star vaiado. Um branco que não era mais branco, a borracha lateral rachada e o tecido tão puído que dava para ver à distância. Um tipo comum, sob todos os aspectos, e, de alguma forma, algo me inquietava e eu não sabia dizer o que.

-Ei, você! É, aí do fundo! Posso ajudar?

Veio andando devagar, nervoso, como se ouvisse a marcha nupcial de um casamento que não queria que acontecesse. Sentou.

Repeti a pergunta, impaciente: 

-Posso ajudar?

-Eu gostaria de fazer uma denúncia. 

Então eu vi. Eram os olhos. tudo naquele menino era normal, com exceção dos olhos. Aqueles eram os olhos de quem já esteve em mil cativeiros, passou pelas estradas mais tortuosas e esburacadas que a vida pode oferecer, encontrou a ceifadora mais vezes do que é possível expressar com palavras. Aqueles olhos fundos, cansados, exaustos, tinham visto coisas que eu, com meus 20 anos de delegacia na São Paulo do século XXI, não conseguia imaginar.

Me forcei a voltar a mim.

-E que tipo de crime o senhor gostaria de reportar?

-Abuso de menor. 

"Isso explica tudo", pensei cá com meus botões. Uma onda da mais pura e avassaladora pena me invadiu. Como deveria ter sido a vida daquele menino? Tanta gente desiste por tão menos... No entanto, lá estava ele. Na minha frente, postura nobre, uma pessoa viva. Viva, contra todas as chances, me gritava seu olhar. Vivo, ereto, digno. 

Mais uma vez, tive que fugir de meus próprios devaneios. 

-Certo. Está tudo bem. Vamos conversar. Me conte o que aconteceu.

Ficamos ali por horas. Ouvi aquele menino vomitar suas entranhas, mostrar tudo o que sofreu ao longo dos anos. Crimes terríveis, que no dia a dia viram códigos: 213, 148, 173, 216-A, 243. Todos eles ali, na minha frente, palpáveis, nos mínimos detalhes. Usei todas as minhas forças para não desabar. Inúmeras foram as vezes que me passava pela mente a questão. como alguém pode ser tão cruel? Tão insensível? Tão... inumano?

Quando finalmente acabou, eu suspirei. Aquilo tudo havia doído em mim, quase fisicamente. Mas a pior parte ainda estava por vir. Com o máximo de esforço para parecer indiferente, tirei os olhos do papel, levantei as sobrancelhas, e, sem largar a caneta, disparei:

-Entendo que deve ser difícil falar sobre seus pais, mas o formulário pede. 

Mais um suspiro. 

-Algoz?

O garoto arregalou os olhos. Se endireitou na cadeira. Exasperou. Passou-se um longo período ao longo do qual não se ouvia nada exceto a respiração carregada da minha vítima, que havia estranhamente acelerado no momento final. Exasperou mais uma vez.

-Eu não sei de onde você tirou meus pais...

-Tá tudo certo, você está seguro aqui, eu só preciso saber...

-Eu.

A ardósia fria se abriu sobre meus pés, e eu caí em queda livre. O resto da frase ficou presa entre meus dentes. Tudo o que eu consegui dizer foi:

-Você tem certeza que sua mãe não fez nada disso com você? Nem seu pai?

Ele me surpreendeu com um sorrisinho de canto. 

-Ah, fez. Mas já faz muito tempo. 

Não conseguia me mover. Não queria escutar, não queria ouvir uma justificativa. O protocolo saiu entredentes, estranho mesmo depois de tantos anos de prática. 

-Levante-se. Vire de costas. Você está preso. Você tem o direito de permanecer calado...

Dissociações da vida privadaOnde histórias criam vida. Descubra agora