Quando o sol se põe

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A figura que me encara no espelho me angustia. Grandes covas profundas, tenebrosas, arroxeadas, contrastando com minha pele excessivamente branca e lábios tornados vermelhos pelo frio. As olheiras são a primeira angústia do dia. E, permeadas por muitas outras, essa angústia se repete diversas vezes ao longo do período em que meus olhos podem ver.

Ajeito os longos e volumosos cabelos louro-escuros, afastando-os dos olhos e jogando-os de um lado para o outro, para que as pontas repicadas apareçam melhor. O movimento me lembra de quando eu era jogada de um lado para o outro, momentos em que nada além de lascívia me preenchia. E a dor e a dificuldade se dissolviam por alguns momentos, que nunca eram longos o suficiente. "Nunca serão", penso com amargura. E me repreendo. Mas a reprimenda não se mostra suficiente, pois logo me pergunto se ele tem essa mesma sensação. Se ele me imagina deitada sobre seu peito à noite, se ele pensa em mim depois de beijar outra pessoa com o mesmo calor com o qual me beija. Se me vê em todos os lugares, e se se pega com vergonha de mencionar mais uma vez meu nome nas rodas de conversa, com medo de tornar o assunto maçante.

O devaneio é longo e exaustivo, mas não dura mais do que alguns segundos. Volto a encarar minha imagem com atenção. Eu sou bonita, sei que sou. Mas as olheiras não me deixam esquecer que sou mais que isso, e talvez não no sentido bom, mencionado com tanta frequência na literatura adolescente que intenta adicionar alguma profundidade numa personagem qualquer. Dizem que os olhos são a janela da alma, mas já não sei se essa afirmação se aplica a mim. Meus olhos estão lá, verdes, vivos, ávidos; o único traço em minha face que revela minha mácula são as grandes covas, macabras anunciadoras de infortúnios que se alojam sob eles.

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Os cabelos molhados que deixei crescer demais caem desajeitadamente sobre minha testa, gotas de água escorrendo por minhas sobrancelhas, passando vagarosamente pelo nariz, a ponto de me fazer cócegas. Elas me incomodam, levando a minha mão esquerda a recolher o resto de água do banho que pingaria sobre o chão do box. Minha mente inevitavelmente deriva, recordando minhas mãos em sua cintura, cutucando-a com cócegas tão insolentes quanto as que a água provoca no meu rosto agora. Pergunto-me se era assim que ela se sentia quando eu a incomodava...

Sua face vem a mim com tamanha nitidez que é como se ela estivesse ali, inclinando a cabeça e sorrindo um sorrisinho de canto de boca, irritada com a minha infantilidade, mas ao mesmo tempo apreciando a situação. "Ela nunca foi muito boa em manter a pose de mina fodona", penso, sorrindo um sorriso cheio de saudades. "Mas isso nunca fez com que ela deixasse de ser".

O ar frio que entra pela janela me arrepia. Saindo do box, me enxugo negligentemente com uma toalha que já passa da data de lavagem. Sacudo os cabelos úmidos em frente ao espelho: os cachos largos já começam a se formar, conforme crescem incessantemente com o passar do tempo. Minha imagem me contempla, sorridente, alegre, jovial. Ansiosa. Existe sempre uma parte de mim que é dor e vazio, embora às vezes ela seja tão pequena que mal a percebo. Mas ela está lá, firme e invariavelmente lá. Não a entendo, nunca entendi. Não sei se jamais entenderei. Mas não adianta se preocupar com isso agora. Me sinto só, mas isso é passageiro, tenho certeza. Minha figura me encara no espelho. Sob as sobrancelhas grossas, os olhos são a única evidência da dor que há por baixo do meu sorriso.

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Quarta à noite, depois do banho. Minha cabeça ainda lateja de ansiedade pelo dia. Mas também pelo que vem a seguir. Respiro fundo. É só uma conversa, uma forma de descontrair. Mas nos últimos tempos não é isso que parece ser. Sempre que estamos bem, me sinto mal. E quando estamos mal, sinto angústia. A angústia é constante e onipresente, recorrente e intermitente. Mas repetitiva. E desponta cada vez que eu vejo suas sobrancelhas se retorcerem numa expressão de pena de si mesmo por estar longe de mim. Toda conversa estúpida sobre a acuidade histórica de algum filme blockbuster que eu sei que só posso ter com ele é permeada por ela. E cada insinuação que me desequilibra e me deixa de pernas bambas detém um tom de fim. Seus sussurros ditos vagarosa e calorosamente ao pé do meu ouvido por vezes perdem o sentido, e parecem intencionalmente me desmontar de outra forma: "Aproveita, Lívia", elas gritam num volume quase inaudível. "Aproveita, porque isso tem os dias contados. Eu tenho os dias com você contados. Me aproveita enquanto pode". E a dor dessa constatação é desoladora e excitante, tanto quanto um tapa bem dado, uma corda bem atada, uma mão bem firme colocada em volta do pescoço. E acaba inevitavelmente me arrancando suspiros que eu tento inutilmente segurar. 

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⏰ Última atualização: May 07, 2022 ⏰

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