Capítulo I

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A intimação para que se apresentasse no escritório do advogado chegou exatamente trinta dias depois do acidente.
Charlotte estava começando a se recuperar do choque que a morte do pai lhe havia causado, começando a sentir que sua vida voltava aos poucos ao normal, se é que alguma coisa poderia ser normal depois de ter passado por tal experiência! Como podia ter acontecido? Esta pergunta não lhe saía da cabeça. Seu pai, um marinheiro experiente, como poderia ter perdido o controle daquela maneira? Nem ela nem ninguém nunca saberiam a resposta, pensou. Um arrepio percorreu seu corpo ao lembrar-se do cadáver inchado do pai encontrado no porto de Sheerness.
Naturalmente, as pessoas foram muito bondosas com ela. Os amigos do pai, as pessoas com quem ele fazia negócios, todos trouxeram sua simpatia e apresentaram condolências. E agora Charlotte estava totalmente só no mundo. Sua mãe havia morrido há oito anos. Embora não tivesse tido muita convivência com o pai, pois passava à maior parte do tempo no internato, sabia que iria sentir imensamente sua falta.
Entretanto, aos poucos precisou tomar conhecimento de sua situação econômica. Nunca foram ricos, nem tampouco pobres, mas recebeu com imensa surpresa a notícia de que o pai havia feito um vultuoso seguro de vida em seu nome, apenas algumas semanas antes da morte. Naturalmente este fato levantou algumas suspeitas e provocou inquérito, mas os procuradores de seu pai garantiram ao oficial de Justiça que ele, absolutamente, não estava em dificuldades econômicas. Sua casa, numa pequena praça próxima ao Regent’s Park, valia uma pequena fortuna pelos padrões atuais, e a pequena companhia que ele possuía parecia estar indo razoavelmente bem. A Companhia Mortimer não era uma grande firma, mas seus lucros eram seguros. Não havia nenhuma razão aparente para que Charles Mortimer tivesse acabado com a própria vida e, tanto quanto Charlotte sabia, este tipo de inquérito já estava terminado.
Entretanto, descobrir de uma hora para outra que havia se torna­do uma herdeira milionária perturbava Charlotte, particularmente porque nunca ambicionara ter muito dinheiro. Não conseguia imaginar por que o pai se achou obrigado a fazer um seguro daquelas pro­porções, e estava ainda indecisa sobre o que faria com todo aquele dinheiro.
Na época do acidente, estava trabalhando durante meio período numa butique. A loja pertencia à mãe de uma de suas colegas de escola, e como Charlotte tinha acabado de sair da escola e ainda não resolvera que carreira seguir, achou ótima a oportunidade de ganhar algum dinheiro para os gastos pessoais. Gostou de conhecer o assunto de roupas mais de perto, pois estava pensando em talvez se especializar em desenho de moda. Havia em seu próprio colégio cursos de arte que poderiam lhe servir.
Mas tudo estava muito distante, irreal, e ela se culpava amarga­mente por não ter dado mais atenção a seu pai. Quem sabe, ele fica­ra esgotado, com estafa; e agora ela lembrava de ter percebido nele, às vezes, um olhar preocupado. Se ao menos ela não estivesse tão completamente envolvida com seus próprios problemas, sobre a carreira que deveria escolher, teria percebido alguma coisa e convencido seu pai a não fazer aquela última viagem!
Foi então que chegou uma carta curta e seca, com a intimação. Charlotte leu várias vezes a carta e depois atirou-a na bolsa. Calculou que os procuradores do pai deveriam estar surpresos pela sua aparente falta de interesse nos negócios do pai.
Foi com mau pressentimento que chegou aos escritórios do Sr. Falstaff. Esse lugar lembrava-lhe muito agudamente suas primeiras visitas, logo depois da morte do pai. Sentiu a boca seca e os olhos ardentes.
Depois de se cumprimentarem, o Sr. Falstaff indicou a poltrona de couro à sua frente para que se sentasse. Então, permanecendo em pé, começou:
— Estou satisfeito por ter vindo, senhorita Mortimer. O assunto é... Bem, é muito urgente!
Neste momento o telefone tocou e, aborrecido, o Sr. Falstaff pediu desculpas e atendeu. Isto deu tempo para que Charlotte se recompusesse e olhasse atentamente o ambiente, reparando nas estantes cheias de livros de Legislação e Direito. Por que seria que todos os escritórios de advogados tinham sempre esse ar vetusto e solene? Se­ria porque as pessoas que vinham ali estavam quase sempre às voltas com problemas de morte e suas implicações?
Mas abandonou esses pensamentos sombrios. Estaria ficando mórbida? Seu pai morrera e ela tinha que aceitar o fato! Isto acontecia com todo mundo. Não foi isto que alguém lhe havia dito? Que a única coisa certa na vida era a morte? Ela estremeceu. O Sr. Falstaff desligou o aparelho e dirigiu-se a ela novamente:
— Sinto muito a interrupção, senhorita. Espero que não nos per­turbem mais.
— Não se preocupe — respondeu Charlotte. — O senhor estava me dizendo algo?
Estava precipitando as coisas, mas desejava acabar logo com tudo aquilo. O velho advogado observou-a em silêncio por um breve mo­mento e depois, concordando com um gesto de cabeça, afundou na poltrona como se o peso de seus pensamentos tivessem tirado dele toda a sua força.
— Diga-me, senhorita Mortimer — começou ele, enquanto brincava com a caneta —, já ouviu falar de Alex Faulkner?
— Alex Faulkner? — admirou-se Charlotte, olhando espantada para ele. — Este nome não quer dizer nada para mim. Por quê?
— Isto vai ser apurado depois — a expressão do Sr. Falstaff tornou-se sombria. — Seu pai nunca mencionou esse nome à senhorita?
— Não, já lhe disse. Nunca ouvi esse nome antes — respondeu Charlotte imediatamente.
— Não, não, naturalmente não ouviu. Mas certamente... Já ou­viu falar da Faulkner Internacional?
— Faulkner Internacional? — e Charlotte agitou a cabeça. — Acho que não. Olhe, por que tudo isto? Por que o senhor quer saber se eu conheço esse homem?
— Tudo a seu tempo, senhorita. Logo entenderá que estou... Bem, estou em posição bastante delicada e tentando lidar com o assunto da melhor maneira possível.
— Lidar com o quê? — e Charlotte sentiu um certo mal-estar.
— Estou chegando lá, senhorita Mortimer — continuou o Sr. Falstaff com uma expressão de desagrado. — A senhorita dizia que nunca ouviu falar da Faulkner Internacional. Estou surpreso. O nome não é desconhecido, óleos, navios, cassinos...
— Por favor, senhor Falstaff, diga o que está havendo!
— Muito bem. Alex Faulkner era sócio de seu pai.
— Muitos outros também o eram!
— Fico muito satisfeito com isto. Mas este relacionamento entre eles era diferente.
— De que maneira?
— A senhorita compreende. Alex Faulkner não se envolve normal­mente com a direção de suas companhias. Ele emprega diretores pa­ra esse trabalho. Na verdade, poucas pessoas o conhecem bem. Ele não se interessa pela vida social. De fato, creio que tenha uma vida muito tranquila.
— E daí — suspirou Charlotte. — O que isto tem a ver comigo?
— Dê-me tempo, senhorita Mortimer — e os lábios do advogado apertaram-se. — Os jovens são tão impacientes. É essencial que a senhorita entenda as circunstâncias. O seu avô conhecia o pai dele muito bem.
— Conhecia? — e Charlotte começava a se sentir aborrecida.
— Sim. E eu devo acrescentar que Faulkner não é propriamente um contemporâneo de seu pai. Ele deve ter, acredito, quase quarenta anos. Seu pai era alguns anos mais velho, não é?
— O senhor sabe muito bem que sim.
— Sim. Bem, eles... Seu pai e Faulkner encontraram-se uma vez há alguns anos. Na verdade os dois tinham um interesse comum: velejar. Seu pai conhecia a França muito bem, não?
— Nós tínhamos lá uma pequena casa — concordou Charlotte. — Papai a vendeu há uns dois ou três anos.
— E ele não mencionou Faulkner a você? — insistiu.
— Mas por quê? Eu ainda estava na escola. E não conhecia todos os seus amigos com quem tinha negócios.
— Esta não era uma amizade de negócios propriamente — respondeu o advogado com um suspiro profundo. Depois, hesitante, continuou: — Senhorita Mortimer, estava a par do grande interesse de seu pai pelo jogo, não?
— O que está querendo insinuar? — perguntou Charlotte muito tensa.
— Penso que sabe, senhorita.
— Ele apostava nos cavalos, algumas vezes. Eu sabia disto.
— Não é disso que eu quero falar. Sabia de seu interesse por jogo de cartas, por exemplo?
— Sabia que ele gostava muito de jogar, sim — respondeu torcendo as mãos. — Ele costumava jogar bridge.
— Não bridge, senhorita Mortimer. Pôquer!
— Não! — exclamou Charlotte.
— Isto é muito mais difícil do que eu havia imaginado — comentou Falstaff penalizado. — Senhorita, o seu pai era um jogador compulsivo. Ele foi assim durante anos!
— Não!
— Infelizmente parece que era assim.
— E o que isto aproxima com esse Alex Faulkner? — perguntou Charlotte depois de respirar fundo.
— Estou chegando lá.
— O senhor disse que esse Faulkner... Tem cassinos. Será que ele convenceu meu pai a jogar neles? E perder dinheiro?
— Eu não quis dizer nada disto — atalhou Falstaff muito aflito. — Bem ao contrário, raramente Faulkner vai a seus cassinos. Mas seu pai contraiu dívidas, bem, contraiu dívidas muito pesadas.
— Não acredito nisto. Veja, a firma, nossa casa...
— Parece estar tudo intacto, não é? Mas Alex Faulkner possui to­dos os bens de seu pai, tão seguramente como se tivesse assinado as escrituras.
— Mas por que eu não sabia? Por que não me contaram? — balbuciou Charlotte.
— Pela simples razão de que eu somente soube destas coisas ontem à tarde.
— Mas como o senhor pode estar certo que...
— Estou convencido de que os advogados de Faulkner dizem a verdade.
Charlotte deu um salto da cadeira, incapaz de ficar parada depois de tal declaração.
— Eu, eu não posso acreditar nisto! — exclamou.
— Nem eu, a princípio.
O cérebro de Charlotte trabalhava febrilmente, tentando entender no que estas revelações afetariam sua vida. Então, a jovem teve uma inspiração:
— O seguro! O seguro de vida de papai! — e respirou aliviada. — Graças a Deus por ele!
— Receio... que não...
— O que quer dizer?
— Oh, senhorita, não pode perceber? Isto muda completamente as coisas em relação à morte de seu pai. Se a polícia souber que seu pai estava endividado desta maneira, os fatos que o oficial de Justiça apurou não serão convincentes.
— O senhor acha... O senhor acha que papai... Oh, não! Ele não faria isso!
— Nestas circunstâncias acho que ele faria sim!
— Mas que circunstâncias? — e Charlotte encarou-o ansiosamente.
— Sente-se, senhorita. Eu ainda não terminei o que tinha a dizer. Charlotte deu a impressão de que ia recusar-se a obedecer, mas acabou se sentando, fixando os olhos muito abertos no advogado.
— Tenho em minhas mãos uma carta do senhor Faulkner — começou lentamente o Sr. Falstaff — em que ele menciona um certo contrato firmado com seu pai, em troca de uma enorme quantidade de dinheiro.
— Que tipo de contrato? Deixe-me ver a carta.
— Tudo a seu tempo, senhorita. Em resumo, ele perdoou as dívidas de seu pai em troca de... Uma outra coisa.
— Oh, pare de rodeios! Que "outra coisa"?
— A senhorita. A senhorita!
— Eu? — e Charlotte afundou na poltrona, atônita. — Eu?
O Sr. Falstaff parecia completamente arrasado quando continuou:
— Senhorita Mortimer, durante nossa breve conversa, tentei explicar que o senhor Faulkner leva uma vida muito... isolada. Ele se interessa muito pouco pelos outros, e em consequência existem muito poucas mulheres em sua vida. Apesar disto tem consciência de que algum dia terá de se aposentar, e quando chegar essa hora necessitará de um herdeiro para chefiar a organização, depois de sua morte...
— O senhor... O senhor quer dizer... — e Charlotte tropeçava nas próprias palavras, tentando encontrar sentido numa coisa muito sinistra para ser verdadeira. — Meu bom Deus, o que ele pensa que eu sou? Um animal para reprodução?
— Calma, senhorita. Não é assunto para brincadeira.
— O senhor tem toda a razão. Não é mesmo? É estúpido e ridículo! Eu não acredito que alguém hoje em dia, neste século, possa seriamente pensar numa coisa destas, uma coisa tão bárbara! Eu? Casar com um homem que nem conheço? Um homem bastante velho para ser meu pai? — uma dúvida passou em seu cérebro. — Calculo que ele está falando em casamento.
— Oh, sim! Os advogados foram muito claros a esse respeito.
— Suponho que deva me sentir lisonjeada! Que ele tenha se decidido a usar logo eu! — exclamou furiosa.
— Senhorita Mortimer!
— Bem, isto é uma loucura!
— O senhor Faulkner é um homem muito determinado.
— Bem, nada feito, e está decidido!
— Receio que não esteja decidido, como diz a senhorita.
— Por que não?
— Não acredito que tenha pensado no que isto significa, senhorita Mortimer. Alex Faulkner tem a senhorita em suas mãos, do mesmo modo que tinha seu pai. Sua casa, suas roupas, seu carro... Até sua firma.
— Mas ainda resta o seguro.
— Duvido que ele seja pago!
— Mas por que eles suspeitariam? O senhor disse que mesmo sendo o advogado não sabia de nada até que Faulkner...
— Senhorita, tenho minha posição a zelar. Eles terão que ser informados. Mas, mesmo que eu me calasse, Alex Faulkner não calaria de maneira alguma.
— O senhor acha que ele informaria à polícia?
— Se a senhorita se recusar a cumprir o contrato, ele poderá tomar qualquer atitude!
— Que... Que porco! — Charlotte começou a sentir-se fisicamente mal. — Por que ele está fazendo isto?
— Porque a deseja como... esposa.
— Mas por quê? Por que eu?
— Talvez seu pai... — mas não continuou a frase. — Eu não sei! Ele está à procura não de uma mulher para amar, senhorita. Ele quer somente uma mãe para o filho dele.
— Meu Deus, mas isto parece a Idade Média! — Charlotte levantou os ombros. — Bem, vamos deixar que ele faça o pior. Deixe que fique com a companhia e com a casa e com o carro! Eu posso ganhar minha vida. Já tenho um emprego. Não preciso do dinheiro dele, como meu pai precisava!
Ela se recusava a considerar todas as outras implicações, atrás de tudo isto. Eram muito dolorosas para ser enfrentadas ali, naquele escritório seco e empoeirado, em companhia daquele velho, também seco e empoeirado!
— Charlotte! — disse o advogado inclinando-se para ela, usando seu nome de batismo pela primeira vez. — Charlotte, não julgue seu pai muito severamente. Se quer minha opinião, ele pôs fim a sua própria vida...
— Porque não podia enfrentar o que tinha feito!
— Não, não. Para tentar remediar o que tinha feito, Charlotte. Lembre-se do seguro. Ele só o fez algumas semanas antes da morte. Obviamente, seu pai pensou que se Faulkner recuperasse seu dinheiro...
— O senhor pensa que... — murmurou Charlotte em descrédito, quase sem fôlego.
— Não. É inútil — respondeu o Sr. Falstaff com firmeza. — Depois de ter recebido a comunicação, entrei em contato com os advoga­dos de Faulkner pelo telefone. Eles garantiram enfaticamente que o senhor Faulkner não está interessado na liquidação das dívidas.
— Mas... mas isto é legal?
— Bem, também não é ilegal. Não nestas circunstâncias. Na verdade envolve uma espécie de chantagem moral, mas isto também não é ilegal. Claramente, seu pai subestimou o homem.
— O que quer dizer? Que tipo de chantagem moral?
— Pense, Charlotte, o que a imprensa iria fazer sabendo do suicídio de seu pai. Estaria preparada para ver o seu nome arrastado na lama?
— Se o que o senhor fala é verdade, meu pai morreu por minha causa! O senhor acha que ele se importaria que seu nome fosse desmoralizado por causa disto? Se isto impedisse Alex Faulkner de conseguir o que planejou?
— Você se esqueceu do contrato — disse o Sr. Falstaff muito preocupado.
— Eu não assinei nenhum contrato!
— Não, mas seu pai assinou!
— Certamente Faulkner não iria publicar isso — retrucou Charlotte. — Deus do céu, ele ficaria tão envolvido quanto meu pai!
— Não necessariamente. Charlotte, você precisa entender que um homem na posição de Faulkner pode fazer quase tudo sem sofrer as consequências. Não duvido que ele controle mais de um editor importante de um jornal de tiragem nacional. Já imaginou como isto seria mostrado? "O preço da virgindade!" "Homem, de negócios paga dívidas de jogo entregando sua filha!" "Os jogos infames que as pessoas jogam!"
— Está perdendo seu tempo aqui! — soluçou Charlotte. — Deve­ria estar escrevendo essas manchetes nos jornais!
— Mas essas frases não são minhas — respondeu Falstaff em voz baixa. — Elas foram ditas a mim!
Charlotte levantou-se e começou a andar nervosamente pela sala.
— Ele não pode fazer isto comigo! Não pode!
— Não apostaria nisto, senhorita. A não ser que esteja preparada para enfrentar a terrível onda que isto vai provocar.
Charlotte caminhou até a janela e olhou para a rua movimentada, no ponto comercial de Londres. Sua cabeça estava um turbilhão. Não conseguia admitir tudo o que tinha ouvido, e o que tinha escuta­do, não conseguia acreditar. Já tinha ouvido falar desse tipo de gen­te, quem não tinha ouvido? Mas que seu pai estivesse entre este tipo de pessoas, isto ela não podia aceitar. Quem seria esse homem que achava ter o direito de vida e morte sobre as pessoas? Que espécie de homem era esse que chegava a ponto de levar outro homem a sacrificar sua própria filha por um jogo de cartas? Parecia um melo­drama da era vitoriana, só que ela não era nenhuma dama vitoriana. E ele era um homem frio, sem coração nem entranhas, incapaz de arranjar uma esposa por si mesmo!
— Então onde está ele? Esse Alex Faulkner? Eu quero vê-lo — disse, voltando-se para o advogado.
— Ele não vive na Inglaterra — respondeu secamente o Sr. Falstaff. — E isto vai ter que ser combinado.
— Oh, sim, providencie isto. Quero dizer a ele pessoalmente o que acho dele! — exclamou Charlotte, com os lábios tremendo.
— Oh, Charlotte — interveio Falstaff, de pé. — Por favor, não perca a calma. Você é um pouco mais que uma colegial. Faulkner poderia comer você viva!
— Oh, realmente? Não depois de eu dizer tudo o que penso. Que ele é um monstro, e não um ser humano! Que patética caricatura de um ser humano ele deve ser para conseguir seus triunfos manipulando outros seres humanos!
O Sr. Falstaff podia pressentir as lágrimas não derramadas em seus olhos brilhantes e balançou a cabeça, dizendo amargurado:
— Minha querida, pare de se atormentar desta maneira!
— O que quer que eu faça? Que aceite isto?
— Penso que vai ter que aceitar. Existem destinos mais tristes.
— Existem?
— Oh, sim. Uma vez que a senhorita... Bem, providenciar o herdeiro necessário para a fortuna Faulkner, estará livre para partir. Terá o divórcio e viverá confortavelmente, luxuosamente, durante o resto de sua vida. Assim, com a idade de 21 anos, seria dona de si mesma outra vez.
— Ele disse isto? — e as sobrancelhas castanhas de Charlotte se uniram.
— Está no contrato!
— O contrato! — Charlotte exclamou ofegante. — Onde ele está? Eu tenho o direito de vê-lo!
O Sr. Falstaff abriu uma gaveta de sua escrivaninha e tirou um grande envelope. Passou-o para a moça, dizendo:
— Leve para casa. Naturalmente é apenas uma fotocópia. Eu lhe telefono amanhã quando tiver novas informações.
— Só por curiosidade — perguntou Charlotte apertando o envelope com os dedos —, onde este Faulkner vive?
— Ele tem uma ilha, fora do continente grego, Lidros. E passa lá a maior parte de seu tempo livre.
— O senhor... O senhor pode dizer à pessoa com quem consegue se comunicar, que me recuso a falar neste assunto até encontrar pessoalmente Alex Faulkner — retorquiu Charlotte.
— Minha querida. Ninguém ordena nada a Alex Faulkner — comentou Falstaff com um gesto de desânimo. — Você pode apenas sugerir.
— Então sugira! Mas faça com que ele apareça! — emitindo um som entre um riso e um soluço. — Meu Deus, ter que insistir em encontrar o homem com quem esperam que eu me case!
Às três horas da manhã Charlotte desceu as escadas e foi fazer um pouco de chá. Estivera deitada horas a fio, muito excitada, sem conseguir dormir, seus nervos muito tensos com o sentimento de in­segurança que a dominava. Não podia acreditar no que estava acontecendo ao seu redor, mas estava acontecendo! E parecia que ela podia fazer muito pouco para evitar tudo isso.
Tinha sentido profundamente a morte do pai, mas as coisas que soube dele deixaram-na profundamente abalada. Rapidamente recordou que soubera pouco do seu vício de jogar. Lembrou-se das raras ocasiões em que ele lhe oferecia um presente, em comemoração à vitória de um cavalo que vencera os concorrentes de ponta a ponta. Ela seria muito jovem para perceber um sentido mais profundo na­quilo tudo? E, como se o jogo fosse uma droga, ele se viciou cada vez mais? Estimulado, sem dúvida alguma por homens como esse tal Alex Faulkner?
Mas que vício era este, que o tinha levado a colocar o seu nome num documento tão infame como aquele contrato, que ela leu com tanto desgosto? Como ele tinha podido, mesmo por um momento, ter pensado neste tipo de solução? E depois acabar com a vida daquela maneira. Por que agora estava convencida de que era isto mesmo que ele tinha feito? Algumas pessoas achavam que os suicidas são pessoas covardes, com medo de enfrentar a vida. Em seu atual estado de espírito, estava inclinada a concordar com elas. De qualquer lado que se olhasse, era tudo uma terrível confusão: de um lado, enganando-a e, de outro, enganando a companhia de seguros. Era como se o homem que ela havia conhecido e amado nunca tivesse existido, e isto era um golpe terrível.
Mesmo assim, não suportava pensar nos comentários que fariam as pessoas que conheciam seu pai, se soubessem a que grau de baixeza ele tinha chegado. Alguma coisa, um orgulho interior, fazia com que ela quisesse se livrar das risadas dissimuladas, da simpatia cheia de piedade, com que sem dúvida a cumulariam, se tudo isto viesse à tona. Portanto, se ela prosseguisse com isto, estaria agindo a favor dela mesma, e não de seu pai, pensou amargamente. Será que este Alex Faulkner era tão esperto? Até que ponto iria seu cinismo ao julgar seus semelhantes?
Uma das pílulas que o médico lhe dera para que dormisse imediatamente, por ocasião da morte de seu pai, ajudou-a a esquecer tudo durante a madrugada, e ao acordar por volta de meio-dia sentiu a cabeça pesada e um gosto desagradável na boca. A princípio não atinou porque tinha dormido até tão tarde; então as lembranças do dia anterior com todos os acontecimentos voltaram de uma vez. Rolou na cama e escondeu o rosto no travesseiro. Se ao menos pudesse enterrar Alex Faulkner! pensou rancorosamente. Jogando as cobertas para o lado, levantou-se.
Quando desceu, pouco depois, magra e pálida, vestida com uma calça de brim marrom e uma camiseta verde, o cabelo sedoso preso por uma travessa, encontrou a empregada, Laura Winters, muito ocupada, picando verduras numa caçarola. Laura era uma mulher das Bahamas, com pouco mais de trinta anos, divorciada e com dois filhos para criar e já trabalhava para os Mortimer há uns cinco anos. Pareceu aliviada ao ver Charlotte, embora ficasse preocupada ao notar as olheiras da jovem.
— Já estava pensando se não devia acordar você, Charley — disse agitando a cabeça. — Você chegou muito tarde ontem à noite?
— Não. Não dormi bem esta noite, Laura. Com você tudo bem?
— Sim, tudo bem. Tive que ir buscar a Jessie na escola porque estava com dor de estômago, mas não é nada sério. Comeu demais aquelas ameixas, foi só isso. A árvore do quintal ficou carregadinha este ano. Fiz mais de sete quilos de geléia.
Charlotte mordeu os lábios. Seu pai adorava a geléia que Laura fazia. Foi até o filtro e pegou um pouco de água, que tomou em pequenos goles, enquanto olhava para as mãos ágeis de Laura, que lidava com cebolas e cenouras.
— Alguém me telefonou? — perguntou com voz sumida.
— Sim — respondeu Laura, franzindo a testa. — E eu tinha me esquecido. Aquela senhora para quem trabalhava telefonou. Mandou um recado: que não tem tido na loja nem metade dos rapazes que costumavam aparecer quando você trabalhava lá.
Charlotte, que a princípio ficara tensa, acalmou-se, com um ligeiro sorriso. Laura continuou:
— O que há com você? Está terrivelmente pálida. Não continua chorando por causa de seu pai, não é? Isto não faz nada bem. Ele se foi e a vida continua. Você precisa reagir, Charley!
— Talvez eu tenha que... Ir embora, Laura — disse, colocando o copo na mesa.
— Ir embora?! — repetiu Laura espantadíssima. — Para onde você iria?
— Eu... Eu não sei. Grécia, talvez.
— Grécia! E quem você acha que conhece na Grécia? — Laura estava incrédula.
— Não sei ainda para onde vou — retorquiu Charlotte secamente, e acrescentou: — Sinto muito, Laura, mas talvez eu tenha mesmo que ir.
Laura ficou séria, mas continuou o trabalho, dizendo desconfiada: — Aí tem mais alguma coisa que você não está contando. Está mesmo me contando a verdade? Sobre a noite passada. Você não saiu por aí e se envolveu com algum homem, não é?
Charlotte achou graça da insinuação, se ao menos Laura imaginasse! Balançando a cabeça dirigiu-se para a porta da cozinha e disse:
— Faça um almoço simples, Laura. Não tenho realmente muita fome.
Deixando a empregada envolta em seus pensamentos, Charlotte atravessou a cozinha e foi até o confortável terraço, que dava para o jardim nos fundos da casa.
Charlotte abriu as portas e saiu para o pátio. Agora havia um em­pregado para cuidar do jardim, e era muito agradável ficar ali, num dia de verão, sentada debaixo das árvores frutíferas. Não que ela pudesse fazer isto durante muito mais tempo, pensou deprimida. Qual­quer que fosse a solução, a casa teria que ser vendida.
Charlotte estava inclinada, examinando um besouro grande, que tinha se metido entre duas pedras do chão, quando a campainha da porta soou. Pensando ser um vendedor, Charlotte não se interessou em ir abrir, mas ouviu passos atrás dela e olhando sobre os ombros viu Laura muito agitada, saindo pela porta do terraço.
— É um homem — disse a empregada em voz baixa. Charlotte imediatamente aprumou o corpo.
— Um homem?
— Sim, nunca o vi antes, mas ele insiste que você sabe quem ele é. Eu não sabia o que fazer, então eu deixei que ficasse de pé no hall. Ele disse que seu nome é Faulkner... Faulkner? É isto mesmo?

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