Capítulo VI

57 3 0
                                    

Apesar de tudo, Charlotte deve ter dormido outra vez, pois acordou com a voz de Tina chamando seu nome várias vezes. Abriu os olhos relutante, sentindo uma sensação dolorida nos membros inferiores; tomou então consciência, amargamente, do que tinha ocorri­do. Lembrou-se de sua nudez sob os lençóis e uma onda de vergonha tomou conta dela. A empregada grega estava de pé, ao lado de sua cama; ficou de bruços, escondendo o rosto no travesseiro e dizendo, levemente irritada:
— O que você quer?
Os olhos vivos de Tina registraram a desordem nas cobertas e o embaraço de Charlotte, mas sua voz era gentil quando se dirigiu a ela:
— Maria está preocupada, Kyria. São onze horas.
— Onze horas! — repetiu Charlotte, admirada.
— Não há pressa, Kyria — protestou Tina —, desde que não esteja doente...
— Não estou doente — falou Charlotte, contrariada. — Agora pode sair. Diga a Maria que não quero nada agora de manhã.
— Oh, mas Kyria...
— Nada! —insistiu Charlotte, encarando friamente a criada que, resmungando, saiu do quarto.
Depois que ela saiu, Charlotte se levantou. O reflexo de sua figura no grande espelho do guarda-roupa chamou sua atenção e por um momento parou, olhando para o seu corpo nu, sem nenhum prazer. Deveria haver algum sinal, pensou ela, alguma evidência do que tinha acontecido, mas não havia nada. Tomou o banho mais quente que aguentou, esfregando-se violentamente, como se pudesse apagar o contato das mãos fortes e dominadoras de Alex.
Deixou o quarto na hora do almoço e, embora não tivesse apetite, fez um esforço para comer e percebeu, com crescente irritação, que sua falta de apetite se devia à partida repentina de Alex. Provávelmente Tina tinha comentado o que vira no quarto, e a vã tentativa de Charlotte de esconder o que acontecera se tornara evidente, ao deparar que sua camisola estava rasgada num lugar que dificilmente escaparia ao olhar da criada.
Saiu da mesa e procurou isolar-se. Estava chocada e amargurada, sem vontade de enfrentar aquela coisa terrível que tinha acontecido com ela, as pernas bambeando cada vez que pensava nas consequências futuras. Havia momentos em que até gostaria que Alex estivesse ali, para que pudesse extravasar um pouco de sua raiva e ressenti­mento sobre ele, desabafar todo o seu desgosto e frustração por tê-la violado daquela maneira. Mas seu pavor, sobretudo, era pensar em revê-lo; vivia amedrontada, com medo de ele fazer outra vez com ela o que fizera naquela madrugada.
Durante o resto daquele dia estranhamente irreal, andou pelos corredores e quartos da casa, incapaz de prestar atenção a qualquer coisa, ou de ler, vagando e pensando, e sempre voltando ao mesmo pensamento, de sua completa infelicidade. Como tinha chegado até a gostar dele? Como poderia ter-se preocupado se alguma coisa poderia acontecer com ele? Quando conseguiu pensar nos detalhes do que lhe ocorrera, teve de admitir que, de algum modo, tinha provocado o que acontecera. E isto era o que mais lhe custava aceitar!
Na tarde do dia seguinte, chegou um bilhete endereçado a Charlotte. Não ficou nada surpresa, ao ver que era da avó de Alex. O bilhete era breve e positivo. Convidava Charlotte para o almoço, no dia seguinte. Yanni, o velho que tinha sido o portador, viria buscá-la ao meio-dia, na charrete.
Era mais que um convite: era uma intimação. E Charlotte não pôde pensar em desculpa nenhuma para recusá-lo. Entretanto estava apreensiva, pois não se esquecera do olhar penetrante, dos modos dominadores da velha senhora. De algum modo, durante sua estada lá, precisaria controlar-se para que Eleni não percebesse que alguma coisa tinha acontecido depois de sua última visita.
Mas, antes da visita à casa da avó de Alex, outra mensagem chegou para ela. Veio pelo helicóptero, e quando Charlotte ouviu que máquinas do aparelho baixavam perto da casa, toda sua calma superficial desapareceu. Nesta manhã, tinha acordado muito cedo e mandado que Maria servisse o café na sala, mas agora, ouvindo o helicóptero, e convencida de que Alex vinha nele, preferiu ficar em seu quarto, onde se julgava mais segura.
Ouviu a conversa animada das mulheres, enquanto o aparelho descia. Não havia dúvidas de que tinham ficado surpresas de ela não se ter levantado para receber o marido, mas suas pernas tremiam como geléia e ficou petrificada no lugar.
Então, ouviu uma voz masculina, entremeada com vozes mais finas de mulheres, falando alegremente em grego. Era uma voz que Charlotte já ouvira, mas não era a de Alex, e suas mãos, que seguravam nervosamente a borda da mesa, afrouxaram-se. Maria apareceu embaixo, no hall, e atrás dela vinha George Constandis. Ele parecia estar sozinho, e quando Maria, com um gesto, apontou, ela levantou-se e, muito tensa, esperou que ele subisse os degraus.
Kalimera, Kyria — falou ele polidamente, inclinando-se ligeiramente. — Está tudo bem?
Kalimera. — E Charlotte usou automaticamente a palavra grega de saudação. Depois, desajeitadamente, perguntou: — Onde, onde está ele?
— Ele? Quer dizer Alex? — E parou do outro lado da mesa. — Está em Nova Iorque, você sabe.
— Mas você...  você não ia também para Nova Iorque? Você de­veria ir com ele!
— Mudamos nossos planos ao chegarmos em Atenas. Ficou decidido que só Alex voaria para Nova Iorque.
— Sozinho? — a interrupção de Charlotte equivalia a uma acusação, e George sorriu.
— Não há motivo de alarme, Kyria. Alex nunca está sozinho. Dimitrios está com ele, naturalmente.
Charlotte desprezou-se pela maneira como reagira, mas ao mesmo tempo admitiu que sentiria a mesma ansiedade por qualquer pessoa que corresse riscos desnecessários.
— O que eu queria dizer é...  que estou surpresa que ele possa se arranjar sem o senhor — retorquiu rapidamente, frustrada pelo olhar esperto que encontrou.
— Bem, como ia dizendo, nossos planos foram mudados. Foi resolvido que eu ficaria em Atenas até que Alex telefonasse dizendo quais suas intenções.
— Ele já telefonou? — perguntou ela friamente.
— Sim — concordou George. — Eu preciso comunicar à senhora, que uma coisa muito desagradável aconteceu. — E Charlotte levantou ansiosa a cabeça, enquanto ele continuava: — O senhor Steiner, que tratava da fusão das corporações que estávamos negociando em Nova Iorque, foi hospitalizado devido a um acidente. A questão é que além de Steiner somente Alex pode acertar os detalhes. Consequentemente... — e ele encolheu os ombros. — Alex vai ter que continuar em Nova Iorque até resolver o negócio.
Charlotte apoiou-se na mesa. Não sabia muito bem o que tinha esperado, mas não era isso, definitivamente. Seu cérebro estava totalmente confuso com as notícias que George Constandis tinha trazido, e ela olhava para ele fixamente, sem o ver. Era ridículo, mas Charlotte estava ressentida pela vinda de George, pela sua grande simpatia, sua camaradagem com os criados, e mais do que tudo, sua suposição de que ela estava com saudades do marido. Teve tentação de lhe dizer que, da parte dela, se Alex resolvesse passar os próximos seis meses em Nova Iorque, não se importaria. Mas isto seria criancice e não completamente verdadeiro.
— O senhor... Também vai para Nova Iorque? — perguntou ela com relutância.
— Vou. Por quê? Tem algum recado para seu marido? — perguntou George, olhando fixamente para ela.
— Não! Nada.
— Muito bem, Kyria. — E dirigiu-se para os degraus. — Sem dúvida, seu marido vai mantê-la informada dos próximos aconteci­mentos.
— Quanto tempo... Isto é, Alex espera ficar fora... muito tempo — falou ela, os dedos apertando outra vez a borda da mesa.
— Pode levar três, talvez quatro semanas. Quem sabe? Depende até onde Steiner tenha chegado nas negociações.
— Essa negociação é importante?
— Oh, sim, Kyria!
— Mas por quê? — e Charlotte não pôde evitar a súbita revolta. — Ele já não tem bastante dinheiro?
— Este tipo de negócios nem sempre traz dinheiro — explicou George. — Pelo menos não da maneira que está pensando. Este especificamente vai levar a uma coisa bem mais importante: abrir mercado de trabalho para um grande número de pessoas.
— Trabalho?
— Sim, trabalho, empregos. Esta firma em Nova Iorque está... como diria... está em má situação.
— Mas por que Alex iria fazer uma fusão com uma firma que está mal de finanças? — perguntou Charlotte, confusa.
— Com a atual situação econômica, muitas firmas estão em dificuldades. Mas neste caso existem importantes sanções para importação e exportação que podem nos ser úteis.
— E assim as pessoas que trabalham para essa companhia não vão perder seus empregos?
— Isso mesmo.
— Nunca podia supor que Alex se importasse com um coisa des­sas — murmurou ela com amargura.
— Pois seu marido se importa, e muito — afirmou George. — Ele se preocupa demais com qualquer pessoa que esteja em dificuldades. Por que pensa que ele tem tantos inimigos? Porque inspira uma profunda lealdade a seus empregados que muitos homens gostariam de anular.
Charlotte ficou ruborizada, ao ouvir esta defesa apaixonada, e sentiu-se obrigada a se defender:
— Eu não sei muito a respeito de... dos negócios de meu marido, ou do grau de devoção aos seus empregados.
Kyria — falou novamente George, apoiando-se na mesa —, quando o pai de seu marido foi assassinado, as ações da Corporação Faulkner caíram dramaticamente. Era compreensível. Steve Faulkner era um homem brilhante, no auge do poder. E Alex, o que era? Um rapazola de vinte e poucos anos. Tinha estudado economia, e era tudo. Entretanto, em quinze anos, Alex não só se igualou a seu pai, mas ainda desenvolveu os negócios, conseguindo o respeito de todos os profissionais do ramo. Nós éramos apenas uma companhia de navegação. Agora estamos no negócio de hotéis, companhias de aviação, agências de viagens, poços de petróleo, jornais... Tem idéia de quantas pessoas nós empregamos?
— Oh, não, não. — Charlotte cruzou os braços. — Como eu lhe disse, não sei praticamente nada sobre os negócios de meu marido. Eles nada têm a ver comigo.
— Mas talvez conviesse se interessar mais — retorquiu George friamente. Os olhos de Charlotte brilharam de indignação. — Sinto muito — acrescentou ele, e explicou: — Eu trabalhava para Steve Faulkner. Estava com ele no dia em que morreu. Estava atrás dele quando saiu do hotel em Paris e foi baleado.
Charlotte olhou para ele e percebeu que eram sinceras todas as suas palavras. Mas como poderia explicar sua posição àquele homem? Como poderia lhe dizer que não tinha sentido qualquer envolvimento seu com a Corporação Faulkner, quando em... o quê? um ano, dezoito meses? seria uma mulher livre outra vez? Não estava interessada! Ou estava? Escolhendo o assunto menos provo­cativo possível, falou meio sem jeito:
— Não deve se sentir culpado pela morte do pai de Alex. Quero dizer, mesmo que tivesse saído primeiro do hotel, a pessoa que atirou provavelmente sabia em quem queria acertar.
— Oh, sim, digo isso a mim mesmo, naturalmente. Alex também me diz isso. Mas ainda ficam as dúvidas. E é por isto que insisto para que a senhora não menospreze os riscos que seu marido está correndo, para não se comportar infantilmente só porque as coisas não se passam como deseja.
— Como eu desejo? — perguntou Charlotte, muito confusa. — Do que está falando?
— Kyria, a vida é muito curta para ser desperdiçada com insignificâncias. Recusar a ele uma simples carta, um simples recado me parece lamentável. Sei que está zangada com ele. Quem sabe preferiria que ele estivesse aqui, e não eu.
Charlotte não podia permitir que ele partisse daquela maneira, mas ele já havia se virado e descido rapidamente os degraus em direção ao helicóptero.
Então George voltou-se para Charlotte, e suas palavras só ela as entendeu:
— Não fique zangada. Todos nós cometemos erros.
— Alex não me pediu para ir com ele para Nova Iorque — ela falou simplesmente, mas a expressão de George não se alterou.
— Será que esposas precisam de convites? — retorquiu friamente. — Mas preciso ir embora.
Ele afastou-se para subir ao helicóptero e ela o viu partir com um sentimento de frustração e impotência. Quando voltou para casa, somente Maria a esperava.
— Kyrios Alexandros — perguntou imediatamente —, ele está bem?
— Sim, Maria, ele vai bem, mas ele não vai... Voltar tão cedo.
— Oh, Kyria!
Quase que a simpatia de Maria desarmou Charlotte. Teria sido tão fácil chorar, deixar que a velha mulher a confortasse, sabendo que acreditaria que sua infelicidade tinha sido causada apenas pelas notícias que George trouxera!
Mas não podia fazer isto. Não podia enganar desta maneira a velha criada, mesmo que estivesse magoada com a atitude de George. Mas as lágrimas que teimavam em cair tinham motivos mais com­plicados, muitos dos quais nem ela mesma entendia.
A casa de Eleni Faulkner era um pouco maior que um chalé, aninhada numa dobra das pedras dando para uma enseada cercada de rochas. Em volta da casa havia um jardim de flores e arbustos. Algumas, como rosas e malvas, Charlotte reconheceu, mas outras eram novas para ela.
Yanni, o velho que guiara a charrete, falava muito pouco inglês, e ela ficou muito satisfeita com isto. Pelo menos não ia ficar também perguntando sem parar sobre Alex e seus negócios.
Eleni Faulkner a esperava na agradável sala de estar. Charlotte foi recebida por uma velha criada, que olhava a visitante com curiosidade. E por que não? pensava Charlotte. A criada pensava que ela era neta de Eleni.
Como da outra vez, a avó de Alex trajava um vestido negro, mas agora tinha um avental branco sobre as amplas saias que chegavam até os tornozelos. Parecia, naquela pequena sala repleta de coisas, uma rainha recebendo sua súdita.
— Então você veio — Eleni comentou, ao recebê-la. — E por que não me avisou que Alex teve que deixar a ilha?
— Eu pensei! — começou Charlotte, muito tímida. — Eu não sabia. Ele não mandou avisá-la?
— Pelo que sei, ele saiu às pressas. Como poderia me avisar?
— Sinto muito — falou Charlotte calmamente, tentando não se; deixar amedrontar.
— Bem, não faz mal. Sente-se, sente-se. Vamos tomar um aperitivo antes do almoço. Você gosta de ouzo?
— Acho que nunca experimentei — respondeu Charlotte.
— O quê? Não provou ouzo? — Eleni parecia chocada. — Betina, feremas to ouzo parakalo.
O ouzo era, Charlotte depois descobriu, completamente transparente, até quando se acrescentava água. Então ficava embaçado, como leite diluído. Entretanto ela apreciou o sabor, e como parecia bastante fraco, aceitou uma segunda dose.
— E agora — falou Eleni, olhando-a por cima dos óculos —, o que está achando da vida sem a companhia de Alex? Muito solitária?
— Eu... Eu vou me arranjando. — Charlotte tomou um gole de sua bebida. — E por falar nisso, tive notícias dele esta manhã.
— Por Constandis, eu sei.
— Sabe?
Charlotte recebeu a informação sem muita satisfação. Então Alex tinha escrito para sua avó, mas não para ela. Era surpreendente co­mo isto a tinha irritado.
— Ele não escreveu para você, suponho — continuou Eleni, com sua usual percepção. — Ele é assim mesmo, nunca foi um bom cor­respondente, prefere sempre usar o telefone. Mas havia coisas que precisava mandar me dizer que não podiam ser transmitidas oral­mente. Constandis é um bom homem, mas não é da família, você sabe.
— Realmente não faz mal — comentou Charlotte, tomando mais um gole de ouzo. — Não tínhamos nada a dizer um ao outro. — E depois, notando como isto iria parecer estranho, acrescentou: — Quero dizer, tudo o que temos a dizer um ao outro pode esperar até ele voltar.
— O que parece não ser para breve — completou Eleni, positiva­mente.
— Não. Mas acho que não podia ser de outro modo.
— Não podia? — a voz de Eleni era cética. — Se eu fosse mais, desconfiada, poderia supor que meu neto continua longe deliberadamente.
Até aquele momento, esta idéia não tinha passado pela cabeça de Charlotte, mas depois pareceu tão lógica que ela se convenceu de que bem podia ser verdade. Seria possível? Seria que, uma vez tendo tido tempo de reconsiderar os acontecimentos antes da partida dele, tinha chegado à conclusão de que os fins não justificam os meios, afinal de contas?
— Eu não penso que a senhora deve se preocupar conosco — declarou com firmeza. — George disse que ninguém mais poderia conduzir este negócio, agora que aquele... Steiner? É este o nome? Agora que Steiner está doente. A última coisa que Alex precisa agora é de uma... esposa ciumenta!
— Bravo! — e Eleni bateu palmas com admiração. — Muito bem dito, Charlotte. Acho que isso quer dizer para que eu cuidasse de minha vida. Eu não poderia falar melhor!
— Essa não foi minha intenção, Kyria — falou Charlotte, enrubescendo mais ainda.
— Bobagem, lógico que sim. Não estrague tudo, agora, pedindo desculpas. Venha, vamos almoçar. Gostaria que você me chamasse yaya, como Alex faz. Kyria é muito formal.
Para alívio de Charlotte, Eleni não fez mais nenhuma pergunta embaraçosa. Charlotte esperava que ela perguntasse como tinham se encontrado pela primeira vez, há quanto tempo se conheciam, o tipo de coisas que pais e avós gostara de saber. Mas quem sabe Alex tinha inventado uma história para ela e isto tinha bastado. Afinal, a visita se passou sem nenhum fato desagradável e, na verdade, Charlotte divertiu-se muito. Uma vez, fora de assuntos pessoais, Eleni era uma pessoa muito interessante. Viajara por quase todo o mundo e tinha muitas coisas curiosas para contar.

A ilha dos desejos Onde histórias criam vida. Descubra agora