Capítulo 06: A Nota Si e o Relógio
Estou sonhando.
Os enrugados dedos de uma senhora esfregam o piano, então manipulam, melodiosos, o Dó, o Ré, o Mi, o Fá, o Sol, o Lá e param no Si. De repente a senhora fica parada, olhando para o teclado, encarando a odiosa nota Si, indagando-se por que todos os pianos vinham com aquela tecla, por que ela tinha de estar ali.
A nota Si, então, branca como cal, pula do teclado com astúcia, e entre o Lá e o Dó, se interpõe de pé. O Si solta um suspiro para a senhora, espreguiçando-se, seguido de um movimento arrastado para sentar-se nas bordas do piano. De repente, a tecla aparece acompanhada de um relógio de bolso estilhaçado, um objeto tão pequeno com estragos tão pungentes.
A nota Si chora enquanto conta o tempo, e chora ainda mais ao se defrontar com o rosto velho e flácido da senhora. "Oh, se ao menos houvesse tempo... depois de todo esse tempo...talvez tudo pudesse ser diferente..., talvez tudo pudesse voltar a ser como era antes... Oh, se ao menos houvesse tempo... ", a nota Si repetia consigo mesma, mostrando o relógio quebrado para a senhora.
Com pena, ela comprime os olhos castanhos e questiona se os ponteiros, a coroa e as fissuras nas bordas do relógio poderiam ser consertadas. Talvez, ora consertados, ainda houvesse tempo, talvez tudo pudesse voltar a ser como era antes.
"Não, dona... o tempo não se conserta. Nem mesmo os deuses ousam consertar o tempo. Não há como consertá-lo. Não há como voltar, não há jeito de recuperá-lo. O tempo é a memória boa que vive em mim.", choramingou a nota Si.
A senhora não tem filhos, nenhum descendente. A senhora não tem marido. A senhora toca piano sozinha em sua casa todas as noites e, todas as noites, senta-se em sua velha almofada, tira a poeira do piano e começa a tocar, até se deparar com a nota Si. A senhora fica assistindo a nota Si lamentar-se todas as noites. Então sente empatia e também começa a lacrimejar, se debulhar em lágrimas, limpar o rosto e enfim mundificar o pranto do teclado com as palmas das mãos, e aí tenta até recomeçar. Mas a nota Si ainda está lá, presa no tempo e no piano. Ela não vai embora.
A senhora, então, ajeita-se na almofada e lembra de todos os relógios rachados e danificados que a nota Si já a apresentara, todo o tempo que não voltará mais. De que tempo, exatamente, se referia?
Se ao menos sobrasse tempo.
Se as memórias são boas, por que, afinal, o maldito Si, chora tanto? Se não faz sentido, por que, então, a senhora também chora?
Se ao menos sobrasse tempo...
A nota Si até que enfim retorna para sua posição no teclado. A senhora volta a tocar. Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá. Ao ver o Si, os dedos da velha estremecem. Ela pensa, "e se...", e tudo recomeça.
Quando acordo do sonho, olho-me no espelho, vislumbrada. De repente, a senhora sou eu, não sei tocar piano, mas penso sobre a nota Si e os "e se's" todos os dias. Olho-me no espelho e de repente sou a nota Si, lamentando pelo tempo que já se foi.
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evermore
FantasyNa grande cidade de Stonehovecor, há mais histórias para serem contadas do que casas, ou árvores, ou qualquer outra coisa. Desde dois iguais que se reconhecem e vivem um amor que nem o dinheiro pode comprar, assassinatos com resoluções questionáveis...