Capítulo 01: Só Os Iguais Se Reconhecem

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Capítulo 01: Só Os Iguais Se ReconhecemSaraid Albrecht, século XIX

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Capítulo 01: Só Os Iguais Se Reconhecem
Saraid Albrecht, século XIX.

Esta é uma história verdadeira.

Quando hoje olho para trás e repasso seguidamente estas desgraçadas memórias, não posso deixar de me questionar como, mesmo após tantos anos, ainda permaneço aprisionada aos mesmos padrões de comportamento. Essa incessante reflexão me instiga a explorar a minha complexidade, o germe que me tornou assim. E então me faz pensar. E esta é uma história que nos faz pensar, tendo a vantagem ou a desvantagem de ser real.

Nasci em Stonehovecor, península que fiz de moradia durante muitas décadas. Aquela extensão foi estrondosa por anos, embora hoje pouco se fale sobre. Stonehovecor ficava em alguma região imprecisa entre a Suíça, a Alemanha e Liechtenstein. Eu costumava dizer que era outono o ano inteiro, o que ainda me soa certo, porque não me lembro de dias muito ensolarados ou muito chuvosos, mas era certo que sempre estava frio.

Stonehovecor era um lugar difícil para ganhar a vida. Ou pelo menos, para aqueles que chamavam as ruas de lar. Se por um lado o palácio refletia as riquezas da região, as ruas refletiam a realidade. As estradas eram perigosas, assaltantes se escondiam pelas florestas, as viagens eram demoradas e desconfortáveis. Para sobreviver, você tinha que ser ágil - tanto com os pés quanto com a inteligência.

Ivy Armstrong era a herdeira da coroa real, prole do casamento (certamente pré-determinado) de Francis e Marjorie Armstrong. Ivy era uma jovem encantadora. Acho que não há melhor forma de descrevê-la. Era minha amiga, embora eu nunca tenha tido muitas.

Ivy Armstrong tinha aquela beleza divinamente angelical e genuína que poucos, quase nenhum, têm o privilégio de nascer com. Não havia falhas em seu rosto. Ainda se não fizesse parte da realeza, poderia ser confundida com uma princesa. A verdade é que Ivy quase assemelhava-se a uma criatura mística. Seus olhos, tão esbugalhados, grandes e circulares, de cor violeta, tão fantasiosos. Cor um tanto quanto singular, se assim pode-se dizer, mas isso não importava, porque Ivy fazia parecer impossível qualquer um sequer possuir olhos bonitos.

Do topo da colina de Rotnar, eu podia contemplar os limitados lugares que Ivy frequentava. A fachada da casa de Thomas: um pequeno, jeitoso e detalhado amontoado de pedras na Vila de Whillans, coberto por hera desde o telhado até a porta puída de madeira; O cemitério de Emden, mais para a esquerda, onde todas os mortos e suas lápides escondiam-se sob a neve no inverno, naquele pedaço de terra abandonado por Stonehovecor; E é claro, o palácio, bem no alto da montanha.

Rotnar era onde eu costumava despender a maior parte do meu tempo. Eu morava bem longe dali, na verdade. A casa dos meus pais ficava no coração da fazenda de Longolok, um terreno generoso que meu pai, ainda quando vivo, havia ganho do rei. Mas eu havia parado de perambular por lá desde que a nobreza começou a adornar as árvores e muros do reino com cartazes toscamente ilustrados com minha imagem, acompanhados por notas insultuosas (embora, devo admitir, precisas): "Procurada: Viva ou Morta", seguidas de uma recompensa irrisória em moedas, que não valiam nem metade do valor que alguém realmente mereceria caso me capturasse.

Aos dezenove anos, fugi rumo à América do Norte, desbravando o oeste selvagem dos Estados Unidos. Abandonar minha antiga vida na fazenda não foi motivo de pesar. Embora a saudade do meu pai, já falecido, tenha deixado um vazio em meu peito, encontrei consolo na certeza de que meus pertences mais preciosos estavam sempre comigo, fiéis companheiros em minha jornada. Tudo que possuo hoje ficará de recordação para os guardas reais que o acharem quando eu estiver sob uma cova - a única forma de me prenderem.

Durante minhas noites solitárias na América, eu me via envolta em memórias de minha vida anterior. O rosto de meu pai, com seu olhar sério e compassivo, ainda pairava sobre mim como uma sombra protetora. Ele foi o único homem que entendeu a minha natureza inquieta, meu irremediável destemor. Até eu conhecer Gilbert Garvin.

Foi em um desses estabelecimentos empoeirados à beira da estrada, onde os viajantes cansados buscavam abrigo do calor escaldante e das ameaças do deserto, que nossos destinos se cruzaram. Eu estava reclusa em um canto escuro, sentada com meu livro, observando com cautela os frequentadores, enquanto planejava meu próximo golpe.

Foi então que ele desceu as escadas, jogou a chave do quarto no balcão da recepção, queixou-se de algo com um rapaz parrudo e saiu dali. Seus olhos brilhavam com uma vivacidade que reconheci imediatamente; era o brilho ardente dos que sabem viver à margem da lei, dos que conhecem os atalhos do submundo para alcançar seus objetivos.

E ele era tão bonito que não parecia desse mundo mesmo. Não o tipo de beleza irrealista, como a de Ivy, e sim uma beleza tentadora, dessas, envolventes, que parecem serem um espelho da própria personalidade.

Com um leve aceno de cabeça, ele se afastou do balcão, seus olhos claros varrendo a sala em busca de algo, ou alguém. Notei a maneira como ele estudava discretamente cada pessoa na sala, os movimentos precisos e a postura confiante que denotava uma familiaridade com situações semelhantes. Notei como ele interagia com o ambiente, demonstrando uma habilidade inata para se adaptar e se mover com facilidade entre as sombras. Foi então que nossos olhares se encontraram, e naquele momento tão fugaz, tudo se tornou claro para mim. Gilbert Gravin não era um forasteiro comum; havia uma aura de mistério ao seu redor, uma aura que eu mesma carregava.

— O lugar é horrível, Buck. Eles não me ofereceram nem um copo de whisky. — Eu o observei discretamente, avaliando cada movimento, cada gesto. Ele estava falando com seu cavalo e acariciando-o. Então ele montou no bicho e foi embora.

Eu fiquei ali, sentada, dentro daquela hospedaria molesta de luz laranja, assistindo-o através de um vidro embaçado e me perguntando para onde ele estava indo; se é que ele estava indo a algum lugar. Algo no jeito como ele não hesitou em não lançar um último olhar para trás antes de cavalgar que chamou a minha atenção profundamente. Ele parecia tão perdido quanto eu na vastidão de poeira e areia que era o oeste, mas ao mesmo tempo irradiava uma confiança tão ambígua que me deixou confusa.

Cada passo que o cavalo dava era mais um eco distante, uma promessa de liberdade que me parecia muito familiar naqueles tempos. Montado em sua montaria, Gilbert parecia uma extensão natural do próprio animal, fundindo-se em um só ser.

Não o vi pelos próximos cinco, dez, vinte, trinta dias, mas com certeza eu não havia o esquecido. Gilbert Garvin não é do tipo que você simplesmente se esquece, e hoje percebo que vou ter que lidar com isso até o dia da minha morte.

 Gilbert Garvin não é do tipo que você simplesmente se esquece, e hoje percebo que vou ter que lidar com isso até o dia da minha morte

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