Sempre no meu aniversário, eu visitava as montanhas de Calavar Smorb. Delas, eu tinha uma vista perfeita da “montanha onde as núvens cobrem o topo”, fora lá que fui ungida ao nascer e batizada como anjo justiceiro, dias antes da extinção total de minha espécie.
Após serem ungidos e terem sua classificação concedida pelos anciões, os anjos eram jogados do topo da montanha, onde suas assas funcionavam pela primeira vez apenas no metro final da queda. Praticamente caiam do céu. E eu, não fui exceção.
Eu ainda acreditava que aquela montanha poderia ser uma passagem para o pós-céu, mas nunca tive coragem para comprovar minha teoria. Ninguém nunca teve. Quando os anjos foram oficialmente considerados extintos, tudo que era interligado a eles, deixou de ter qualquer importância.
Com o corpo relaxado sobre a grama, fechei os olhos e deixei o vento sussurrar em meus ouvidos e beijar meu rosto. Com as palmas apoiadas no chão, eu sentia o leve tremor de cada passo das cabras poucos atrás.
Mas os passos pararam, ou melhor, tornaram-se mais rápidos e mais fracos. Fugindo.
Senti o hálito quente em minhas costas e disse sem abrir os olhos:
— Nem venha com este bafo com cheiro de brasas. Lavei meus cabelos pela manhã, estão cheirando a rosas.
O bufar de decepção do dragão soou antes do mesmo aparecer em minha frente, inclinando as patas para a frente e balançando a calda.
— Basta pôr a língua para fora e virará um verdadeiro cãozinho — sorri para Eygon — se quiser, pode voltar. Pretendo ficar um pouco mais.
Ele inclinou a cabeça para o lado, não entendendo.
— Gosto de passar meu aniversário aqui. Não é sempre que se comemora 200 anos, sabia?
Eygon bufou novamente, antes de se deitar atrás de mim. Encostei minhas costas em seu corpo que mais parecia uma parede escamosa.
Não soube quando adormeci. O pôr do sol aquecendo minha pele foi o que me fez abrir os olhos e bocejar.
— Hora de voltar para casa — aleguei me levantando. Eygon imitou o gesto.
Montei no dragão que não esperou para disparar para o céu.As montanhas eram a parte mais afastada do centro do reino, chegamos em Calavar Smorb quando a lua azul brilhava cheia no céu noturno.
O castelo branco reluzia suas luzes como sempre. Eram visíveis antes mesmo de entrarmos no território da cidade. Não era como um castelo convencional. Era como uma torre enorme com torres inferiores anexas, uma base levemente extensa. A estrutura diminuía a grossura conforte se olhava mais a cima, onde um freche de luz disparava para o céu.
Um sinal, visto de muito longe. Uma bússola, que quando seguida, nos levava para casa.
Eygon aterrissou na plataforma em frente ao castelo, com uma pequena escada há alguns degraus para baixo — que já terminavam em frente a praça da aldeia de eventos — e alguns poucos degraus para cima, para o castelo, enfim.
Me despedi do dragão e adentrei o lugar. A claridade incomodou meus olhos fazendo-me piscar algumas vezes, para ver nitidamente as duas mulheres me esperando, logo no hall de entrada. A primeira, com os cabelos ruivos como fogo se aproximou para um abraço.
— Sabe, seria ótimo se, algum dia, comemorasse seu aniversário de uma forma mais tradicional.
— Quem sabe no ano que vem? — Respondi ainda sentindo aquele cheiro de carmim dos cabelos alaranjados.
— Ainda dá tempo de organizarmos uma festa.
— Se quer uma festa, Davina. Faça — falei me afastando — apenas peço que não use meu aniversário como justificativa, participarei do mesmo modo.
Ela ergueu os olhos para o céu e riu.
— Tudo bem, tudo bem. Não insisto.
Davina mal saiu e o cheiro de mel e lavanda de Orlaith inundou minhas narinas com o abraço.
— Feliz aniversário, Aislinn! Olha, eu particularmente prefiro comemorar com pipoca e bolo durante uma noite do pijama.
As duas me encararam esperando uma resposta.
— Contanto que tenha muito bolo e chocolate que eu possa comer até capotar, aceito qualquer coisa.— Estou sentindo falta de nossa corte — Davina comentou — quando retornam?
— Em dois dias — Orlaith respondeu — algumas missões atrasaram.
Enquanto elas conversavam, minha mente viajava enquanto eu penteava minhas penas.
As assas estavam relaxadas, a poltrona própria para isso ajudou.
Cada pena estava sedosa e leve, quem visse, nem pensaria que as mesmas soltariam farpas afiadas como lâminas quando se sentissem ameaçadas.
Uma característica única de um anjo justiceiro. A espécie mais “coração de fero” apelidava minha mãe. Uma espécie que mata, luta e até mesmo destrói, se for por um bem maior, nunca se preocupara em algum dia, virar uma Sombria.
— Ficou com as assas guardadas o dia inteiro? — Indagou Orlaith.
Assenti.
— Não queria correr o risco de alguém ver.
— Isso não incomoda as costas? — Davina perguntou em seguida.
— Não. Já fiquei algumas décadas sem sequer lembrar delas.
Quando vivia no continente do outro lado do oceano. Onde achava que a magia não existia e eu era um monstro sobrenatural.
Pelo pós-céus! Se não fosse aquela mulher a me encontrar... Queria lembrar como fui parar lá. Tudo era um breu em minhas lembranças, exceto o calo na cabeça e a cicatriz no braço que causaram dor por dois dias.
— Temos uma reunião amanhã — disse Davina — com um lorde de Tanithiwa.
— Qual motivo o leva a atravessar o oceano para vir até aqui? — Indaguei.
Davina deu de ombros.
— Teremos que esperar para ver.
Nilla entrou empurrando um carrinho de servir, com um enorme bolo de chocolate.
Nós três comemoramos e em segundos, já devorávamos o a sobremesa. Os diversos elogios deixaram Nilla corada ao ponto de sair rapidamente, ou simplesmente desaparecer usando os poderes de espectro.
Conversamos e rimos por muito tempo. O salão do lazer geralmente era onde acontecia a maioria de nossas festas noturnas, os sofás de diversos tamanhos e formatos, as almofadas desde as mais simples até as mais grandes a ponto de se considerar uma cama, davam ao cômodo uma aparência convidativa a relaxar.
Os sinos da praça em frente ao castelo foi o que nos fez acordar. E cada uma correu para seu quarto, as pressas.
Coloquei o típico vestido que usava em reuniões. Ombros a mostra, mangas longas, saia fluida e cintura justa. O tecido era branco com leves toques de azul céu, tão discretos que se ressaltavam apenas na saia.
Mantive os cabelos longos e de tom loiro manteiga soltos, repousando a coroa prateada no centro da cabeça.
E principalmente.
Assas escondidas entre pele e carne.
Não esperei o terceiro sino soar para correr, segurei a barra do vestido na lateral do corpo ao descer as escadas.
Pelo pouco que soube, o lorde chegaria no quinto soar do sino.
O quarto sino soou.
A sala do trono era do outro lado do castelo, no primeiro andar.
Não daria tempo.
Comecei a descer os degraus da longa escada em espiral.
O quinto sino soou.
E não pensei duas vezes antes de correr até a ponta da escada e saltar.Sete segundos, foi o tempo que demorei para aterrissar e esconder as assas, ficando entre Orlaith e Davina, a porta abriu e o lorde entrou.
Pelos sentidos aguçados, ouvi Davina suspirar aliviada.
— Lorde Wynfler — cumprimentou Davina.
Ele fez uma reverência que nós três correspondemos.
O semblante do homem voltou-se a nós, surpreso, assustado.
— P-Perdão — balbuciou ele — acho que confundi o horário da reunião.
— Por que diz isto? — Indagou Orlaith.
— Fui informado que os três reis de Smerhyos estariam aqui. Não sabia que eles tinham companheiras.
— Não confundiu nada, Lorde — falei — nós somos as Majestades de Smerhyos.
Os olhos dele se arregalaram.
— V-Vocês?
Nós assentimos.
As três rainhas dos cinco reinos.
Smerhyos desde sua fundação foi governado por três forças: sabedoria, coragem e poder. Cada coroa representava uma destas forças.
Os primeiros governantes foram reis. As coroas — por alguma magia mística e que ninguém nunca soube domar — que escolhem quem serão os próximos. Foi uma surpresa para todos quando a primeira coroa — sabedoria — surgiu na cabeça de uma florista do reino Norte, Davina.
A segunda— Coragem — se projetou na cabeça de uma garota que sonhava em participar do exército de Calavar Smorb, quem diria que o destino a faria comandar estes exércitos, Orlaith.
E quem diria que, praticamente morta, defendendo meu vilarejo atacado por animalis, a terceira coroa — poder — se projetaria em minha cabeça, enquanto eu sussurrava, quase sem voz, a canção que minha avó me ensinou... achando que a encontraria muito em breve.
Não me surpreendia o fato de que os seres de fora de Smerhyos não soubessem, não fazíamos questão de exibir de qualquer forma. Isso era mais uma escolha de minhas duas companheiras de trono, com o intuito de preservar minha verdadeira identidade.
Ainda absorvendo o que acabara de descobrir, o lorde sentou-se na cadeira que os criados colocaram para ele. Davina, Orlaith e eu sentamos em nossos tronos.
— Faz tempo que não temos notícias de Tanithiwa. Como está o continente do outro lado do oceano? — Davina perguntou.
— Veio representar a coroa de Tanithiwa e transmitir a Vossas Majestades o desejo de meu rei. O rei Berek está propondo uma aliança com Smerhyos.
— Que tipo de proposta ele nos oferece? – Indagou Orlaith.
— Minha Majestade está trabalhando em um projeto de classificação de espécies. Principalmente neste continente, onde há o maior número de diversidade de espécies. Em Tanithiwa, isso já está acontecendo, cada reino do país é próprio para uma espécie, elas são classificadas por números.
— Querem privar estes seres de sua liberdade isolando-os em uma região especifica? — Indaguei — mesmo não sendo do agrado dos mesmos?
— Até hoje, não ouve nenhum conflito por conta disso, Majestade. Há reis de poderes inferiores em cada reino, para cuidar de um povo especifico.
— E de qual espécie você seu rei é responsável? — Perguntou Davina.
— Mesmo servindo fielmente a Berek, vivo em Kastyah, reino este, governado pelo rei Phillip. Lar de Fadas e elfos.
— E onde é seu reino? Próximo ao litoral? Há contato com a natureza?
— Não. São nas montanhas de gelo.
Davina arregalou os olhos.
Porque ela era uma fada. E tinha prioridade em saber que fadas odeiam gelo, sua alegria está ligada aos oceanos e as florestas, são a essência de sua força.
Mesmo com as assas arrancadas por seu pai, ela nunca perdeu os poderes e a sensação de ser uma fada.
— Elas são punidas? Se encontradas em outras regiões?
O lorde assentiu.
— O rei exige uma resposta imediata? — Indaguei.
— Não, Majestade. Haverá uma reunião em sete dias, no reino central, Dyahag. Se me permitem... — o lorde retirou do casaco vários papeis grampeados e estendeu-os a nós.
Orlaith levantou, tomando os papeis e voltando ao trono.
— Nestes documentos estão os detalhes da reunião. Se a proposta for de agrado de Vossas Majestades, estão convidadas a participar, tenho certeza que meu rei gostará de vê-las.
Agradecemos e a carruagem do lorde partiu sem muita demora, uma reunião rápida e prática.
Soltei o ar e deslizei levemente o corpo pelo meu trono.
— E então? Ambas já devem ter um veredicto, imagino — falei a minhas companheiras.
— É uma ideia incabível! — Davina exclamou — dividir seres para manter a boa convivência é compreensível. Mas ele nem se importou em colocar os seres em lugares favoráveis à sua magia!
— Talvez, esta seja a questão — respondi — o rei Berek não deveria ter a intenção de favorecer a magia dos seres.
— Mas por que? — Indagou Orlaith — Smerhyos teve seus problemas no passado, mas virou um reino pacífico quando as espécies foram aprendendo a conviver umas com as outras, não foi tão complicado no final das contas. Separa-las não é uma opção para nós.
— A resposta para sua pergunta, só saberemos se irmos a Tanithiwa.
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Quando Caí Do Céu • [EM ANDAMENTO]
FantasiaUm simples ato pode mudar uma vida. Pode destruir nações e dar vida a outras, pode curar e ferir, encantar ou enganar. Foi um simples ato, que originou essa história. Aislinn é uma das últimas criaturas da espécie mais poderosa do mundo: os anjos...