Terra de Lamont
Enquanto João dava água para os cavalos, refletia até onde chegara. Antes somente um moleque de rua, roubando de quem já não tinha muito, para poder se alimentar, até que encontrou um cavaleiro que pudesse lhe ensinar.
O homem viajava de aldeia a aldeia, oferecendo proteção e diversão através de competições barbaras. Vários aldeões tentaram desafiá-lo para tomar seu título e sua espada, porém sem nenhum preparo ou técnica, todos caíram.
Sr. Lincoln apesar de gordo e um pouco cego, era um bom cavaleiro. A calvície avançada e a barriga proveniente de banquetes as custas do povo e dos membros mais abastados aos quais oferecia serviços nas épocas das vacas gordas, não haviam o prejudicado tanto.
Quando o conheceu na taverna da cidade... Não exatamente na taverna, e sim na sarjeta ao lado do estabelecimento, enquanto estava escondido dos guardas pelo mais recente roubo de frutas, o homem mais velho estava bêbado e sem nenhuma noção de onde se encontrava. Cheirava a cachaça e caia sozinho sem nenhuma orientação de espaço.
Vendo a espada pendurada na cintura dele, supôs que deveria ser alguém importante, e lhe buscou água e partilhou das frutas recém adquiridas. Na manhã seguinte o homem lhe pediu para que pudesse acompanhá-lo. Tornando-se seu aprendiz. A lembrança lhe veio na mente, clara como se estivesse acontecendo naquele momento:
"- Não seja bobo garoto! Não é aprendiz que se fala! - Ralhou sr. Lincoln.
João baixou a guarda mirando com olhar desfocado o chão barrento. Então o mais velho continuou sua fala:
- Se fala: escudeiro. Ok garoto?"
Sorriu com a lembrança enquanto continuava o trato com os cavalos. Observou enquanto eles pastavam e sua mente o levou para uma lembrança de anos atrás quando em um infortúnio entrou em conflito com alguns garotos maldosos.
"- Você não quer ser cavalheiro? - Risos. O grupo de garotos ria tendo como sua diversão humilhar. Cabe ressaltar que o riso era tão continuo que chegavam a fazer sons de porcos em meio a risada, tragando o ar pelo nariz em uma estranha e nojenta sinfonia.
Quis jogar o esterco que limpava no rosto do pobre menino rico. Pobre de alma, de elegância, de gentileza e de tudo que o dinheiro não pode comprar. O garoto loiro voltou a falar:
- Qual seu nome mesmo, garoto de merda?
- João. - Respondeu simplesmente, enquanto baixava novamente a ferramenta de trabalho, para efetuar uma próxima limpeza.
- John? - O loiro rico tentou pronunciar o nome sem conseguir, tinha grandes dificuldades com o som fora de seu costume.
- Não, é João.
- Que nome feio.
- Abra seu cérebro, cabeça de minhoca. Sei que essa sua mente limitada consegue pronunciar um "oão"! -Irritado, João disparou:
- Prefiro te chamar de garoto de merda. - Retrucou o garoto rico incomodado pela ofensa.
Antes que pudesse se controlar, levantou a pá vazia e arremessou em direção ao outro, acertando no meio da testa do mesmo. O garoto caiu para trás, sentando no monte de estrume.
- Quem é o garoto de merda agora? - João riu enquanto os amigos do garoto rico tentavam puxá-lo para fora, então ele normalizou a respiração e continuou: - Faça um pequeno esforço, diga: Jão. Não deve ser tão difícil. - Acompanhando as palavras, João levantou novamente a pá, ameaçando.
Acreditando que levaria outra pancada, o pobre menino rico respondeu:
- J-Jão.
- Ótimo, muito bem. - Disse o garoto tranquilamente, se sentindo vencedor de seu primeiro combate."
Irônico pensar que desde este dia horroroso não se apresentava mais como "João", e sim como "Jão." Terminou de tratar os cavalos, saindo do modo automático em que se encontrava, voltando ate o lago, desta vez para buscar água para si e para os outros. Chegando novamente na beira do lago, completou os cantis e as garrafas de Sr. Lincoln e em seguida, as suas. Permitiu-se distrair com o reflexo de si próprio na água.
Observou a própria face, marcada com uma cicatriz na sobrancelha esquerda. Um golpe de faca de um dos soldados quando caiu no chão durante uma fuga. Dois centímetros para baixo e teria ficado cego de um olho. O cabelo castanho caia sobre a cicatriz avermelhada, disfarçando e escondendo de maneira pouco eficaz. A pele pálida dava ainda mais destaque a ferida já curada.
Coçou o queixo, sentindo os pelos da barba crescendo lhe pinicar as pontas dos dedos. Retirou do cinto uma faca pequena mas extremamente afiada. Sentou-se mais perto do lago observando com mais atenção ao espelho d'água, enquanto passava a lâmina no próprio rosto, barbeando. Quando terminou, mergulhou a cabeça na água, lavando. Aguardou Sr. Lincoln na clareira mais a frente. Reuniu madeira para uma fogueira, pois não dormiriam na pousada em virtude do pouco poder aquisitivo no momento.
Enquanto aguardava... riscava o chão em um desenho irregular, misturando hexágonos e linhas aleatórias sem nenhuma pretensão de formar algo em específico. Se tocou que estava tarde demais ao notar que o sol já não brilhava mais e tinha desenhado por quase todo o acampamento improvisado.
Retirou uma pequena adaga de sua proteção na cintura, tendo-a segura firme na altura dos olhos, pronto para atacar e desfigurar qualquer um que entrasse em seu caminho.
Avançou a passos rápidos e cuidadosos, exatamente da forma como fora ensinado, caminhando atento as movimentações da mata ao redor, indo sentido norte, mesmo sentido onde encontraria sr. Lincoln e o amigo alto folgado que seu mestre carregava consigo para cima e para baixo. Chegava a ser engraçado, o alto magro e o baixo gordo.
Distraiu-se por alguns minutos com o pensamento, tanto que tropeçou.
- Inferno! - Reclamou desgostoso, com a cara no barro, viscoso, pegajoso. - Que desgraça, quem foi o infeliz que largou esse tronco aqui?
Ainda reclamando tirou o grosso do barro do rosto com as costas da mão, pois ainda segurava a adaga. Enquanto tentava enxergar, rezava em silêncio para que fosse realmente barro e não fezes de algum animal.
Levantou e abriu os olhos.
Sangue. Tripas arrancadas para fora do corpo. Muito sangue, muita pele e musculo esparramado pelo chão. Contornou o copo... querendo avaliar melhor, e se arrependeu amargamente. As tripas e o peito aberto foram deixados pelo chão e claramente não interessavam. Mas o coração do homem não estava lá! Não estava no peito e nem em lugar nenhum!
Não havia chance de tal estrago ter sido feito por um humano, pelo menos não um humano qualquer.
O rosto do homem estava virado para trás, como se encarasse a própria bunda, claramente o mataram quebrando o pescoço. Com um grande mal estar subindo pela garganta, o jovem Jão contornou o restante do corpo, tentando ver o rosto do infeliz.
- Puta que pariu.
Era sr. Lincoln.
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Cidade Flutuante
FantasyArash é um garoto da cidade de Uhrik. Até que tudo muda e ele é jogado em um reino diferente, Lamont, que em primeira impressão se mostra desconhecido e pavoroso. Em sua saga para retornar a sua cidade natal ele descobre muito sobre si mesmo, sua mã...