Cidade das Rosas, 17 de junho de 2020 - 08:15 a.m.
– O que devo fazer com este "um ano mais velho", Sísifo? – perguntou, olhando nos olhos do gato de pelos pretos e macios, sentado ao seu lado no chão do estúdio de dança – Seguir a maré ou nadar contra a correnteza?Yongseung levou a mão destra ao gato e o acariciou calmamente, recebendo um miado em agradecimento. Levantou-se e apanhou a garrafa d'água e a mochila no canto da sala, olhou-se no grande espelho que tomava toda a parede central e saiu, passando pela pequena recepção do lugar e atravessando a porta dupla que dava direto na calçada da rua. Sísifo vinha logo atrás, em passos lentos.
Sua casa ficava em cima do estúdio de dança. Sua mãe, professora de balé, havia comprado aquele estúdio junto com a casa quando ele e o irmão mais velho ainda estavam no ensino fundamental; Yongseung desde então usava o lugar para praticar seus passos amadores de dança. Quando criança sonhou em ser dançarino profissional, mas com o tempo deixou isso apenas como um passatempo, como uma válvula de escape para quando a realidade vem lhe oprimir.
Abriu a fechadura e empurrou o portão, viu Sísifo passar correndo para o lado de dentro e subir as escadas, trancou o portão novamente, ajeitou a mochila nos ombros e começou a caminhar pela calçada, em direção à biblioteca pública da cidade.
[...]
– Veio trabalhar em plena folga? – ouviu Hoyoung dizer, assim que pisou os pés na entrada da biblioteca. O rapaz de cabelos castanhos e avental caqui veio em sua direção, tomando-o em um abraço apertado. – Feliz aniversário!
– Eu não tinha nada melhor para fazer – sorriu, sendo acompanhado pelo mais velho.
Foram juntos à sala de descanso dos funcionários, pegar o avental e guardar os pertences do Kim, e voltaram às estantes de livros.
– O almoço hoje é por minha conta – Hoyoung sussurrou, passando por Yongseung, empurrando um carrinho cheio de livros a serem arrumados nas prateleiras.
Passou o restante da manhã guardando e apanhando livros nas estantes, limpando as mesas de madeira e colando cartazes de aviso nas paredes da biblioteca. O lugar era enorme, em contradição ao péssimo hábito de leitura dos moradores da cidade, e Yongseung meio que se sentia grato ao fato de nunca encontrar a biblioteca cheia, pois não era amante de lugares lotados e barulhentos. Quando o horário de almoço chegou, ele e Hoyoung se sentaram na última sessão de livros, com as costas apoiadas em uma das enormes estantes de madeira.
– Eu disse que o almoço era por minha conta – Hoyoung disse contente, segurando o bentô de comida japonesa que ele mesmo havia preparado. – Bom apetite!
Yongseung agradeceu com um sorriso comovido no rosto e pegou os talheres para comer.
– Me conta, o que houve?
O mais novo olhou para o amigo, viu seus olhos preocupados e suas bochechas infladas pela comida, desviou o olhar para a estante defronte a eles, e sem perceber, suspirou.
– Minha mãe… – fez uma breve pausa – ela ainda quer que eu me inscreva para a faculdade de Direito.
Hoyoung então percebeu porque Yongseung parecia tão deprimido.
– Vocês brigaram? – viu o amigo negar meneando a cabeça. – Deveria dizer a ela que não quer ser advogado.
– Mas este é o problema, eu não sei o que quero ser. Olhe para você, está no penúltimo ano de Administração, e desde o colégio já sabia o que queria estudar. Meu irmão começou o mestrado em Arqueologia e só vem em casa aos finais de semana, enquanto isso parece que todos os motivos do universo são plausíveis para que eu seja criticado e diminuído, e não só por minha mãe ou pelos amigos da família, mas por mim mesmo… às vezes eu acordo e me pergunto "o que quero da vida?!" ou "o que a vida quer de mim?!". Me sinto deslocado, Hoyoung, fora de órbita, sem sintonia com as coisas que as pessoas ao meu redor parecem estar tão ligadas – soltou outro suspiro, deixando o hashi de lado e abaixou a cabeça, de modo que ela ficasse entre a curvatura de seus joelhos dobrados.
Hoyoung tocou o ombro do amigo, tentando lhe transmitir conforto. Desde que o conhecera, ele era assim, como um peixinho fora do oceano, lutando para respirar na areia seca.
– Já te disse para não se limitar a rótulos. Espere mais um pouco, quem sabe você não se interessa em algum curso, e além do mais, você é a pessoa mais inteligente que eu conheço e não deveria esperar por um diploma para ter essa confirmação… o mundo é seu, meu caro Yong, todinho seu. – sorriu, dando alguns tapinhas no ombro alheio e então voltou a segurar seu hashi.
Yongseung deu um lânguido sorriso ao Bae.
– Obrigado por, você sabe, não me julgar.
Hoyoung apenas balançou a cabeça e olhou para o prato, indicando que a comida iria esfriar.
[...]
Arrumava o último carrinho de livros antes de ir para casa. Dongheon enviou-lhe algumas mensagens, informando que já estava na cidade e que iria buscá-lo no trabalho. Ouviu um estalo alto reverberar pelo corredor vazio. Assustou-se de primeira, e ao olhar para os lados à procura do que fizera tamanho alvoroço, viu um livro jogando no chão.
Se aproximou, vendo o livro aberto, com a capa virada para cima. Olhou a estante de onde o livro havia despencado, notando o espaço vazio que se fez entre os outros livros daquela prateleira. Se abaixou e apanhou o objeto, com os dedos marcando as páginas que caíram escancaradas sobre o piso de madeira, ao virá-lo, notou as poucas palavras escritas em uma das duas páginas. Leu-as por instinto.
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada"*
Yongseung teve a incômoda sensação de estar sendo observado, contudo, olhando pela fissura que o livro abriu na prateleira, não pôde ver nada além dos livros na estante do outro lado.
nt/ *frase de Clarice Lispector
Olá!
Não sei se foi o 'Show de Truman' que invadiu 'The Matrix', ou se foi o contrário kkkk, mas esta fanfic me lembra bastante esses dois filmes. Então, um prólogo um tanto confuso para uma estória um tanto confusa, mas que vai fazer sentido no final (eu espero).*prestem atenção nas datas no início de cada capítulo*
Por enquanto é isso; obrigada por ler e até o próximo capítulo 💖
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Além da Barreira
Science FictionA realidade, tal qual Kim Yongseung a conhece, não passa de um software de última geração capaz de decodificar estímulos psíquicos; já a realidade de Ju Yeonho se trata de um futuro distópico, onde um ser humano criado em laboratório tem sua vida ex...