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As meninas brincavam na calçada de imitar danças. Dançavam. Elas precisavam ficar muito perto umas das outras para não se perderem de vista. Ficavam lado a lado para nenhuma se perder da coreografia. Elas tinham sintonia. E riam.

Da janela, eu mal conseguia vê-las. Mas notava, por seus vultos, os movimentos certeiros recheados de sorrisos. A fumaça se espalhava ao redor, para o alto e para os lados, seguindo o ritmo das meninas, com sua própria velocidade, esvoaçante, pairando, expandindo e misturando-se ao ar poeirento.

Os passantes, seguindo para os afazeres da cidade, passavam pelos lados da brincadeira, sem esbarrar. Assim também seguiam, na rua, os carros, cautelosos, pela baixa visibilidade. Embora sempre tenha algum apressado, buzinando. Aliás, os barulhos advindos assim do invisível parecem mais audíveis. Como dizem: um sentido compensa o outro.

Mas, apesar dessa habilidade da ausência, as surpresas e medos não nos abandonaram. Às cegas, é exigido um maior nível de coragem. Se alguém fumasse muito perto, e você tossisse, não teria meios de acusar o fumante, que mal via a fumaça de sua boca se juntar à névoa acinzentada e serena no ar.

Em épocas mais brandas, era possível enxergar a distância entre duas ou até três casas. Mas o tempo tem ficado mais denso. À noite, evitamos até mesmo abrir a porta, pois mal conseguíamos enxergar um palmo à nossa frente. Ainda assim, eu gostava daquela brincadeira de deixar os meus olhos se acostumando à escuridão, em uma gradual descoberta do espaço.

Em noites de insônia, abria mesmo a janela, para ao menos receber o vento. Evitar o fumaceiro em casa foi privilégio de outro tempo.

Olhando o nada, eu pensava em minha mãe. Gostava de manter viva a imagem do rosto dela. Imagem que me acalantava e aquecia meu coração, com ternura e compaixão. Aproveitava as brechas do tempo brando para olhá-la, enquanto costurávamos juntas, gravando seu rosto.

Gostava de lembrar da imagem de risadas gostosas que ela dava na conversa com as vizinhas. Mas a que mais tenho lembrado (como o remorso corrói!) é sua cara de espanto quando eu gritei em explosão a minha vontade juvenil e súbita de ir embora daquele lugar de cinzas flutuantes.

Eu queria ver o dia nascer, como dizem ser em outros lugares ou mesmo como ela dizia ser em outros tempos. Mas ela esconde a sua saudade para não me ofender. E eu escondia a minha revolta com reciprocidade.

Nem sempre foi assim, mas quando entendi a nossa condição se degradando, tive que aceitar lágrimas mais honestas banhando meu remorso incurável. Eu não pude ajudá-la de forma alguma. O tempo urgia. Eu tentava estudar o máximo que conseguia com a fumaça deslizando entre o livro e eu. Às vezes, dormia por cima dos cadernos e anotações, que mal enxergava, mas tinha que compreender. Já havia terminado a escola, mas precisava de emprego. Eu queria mesmo ajudar minha mãe, que escondeu a nossa pobreza de mim em nome da minha infância.

Mas a fumaça, sentenciosa, não permitia que ela trabalhasse bem. A costura demorava e as pessoas ficando mais tempo em casa não tinham mais tantas condições de se vestir como queriam. Mal se enxergavam. Começamos a ter que fazer costuras para as famílias mais ricas.

Foi em uma dessas casas de madame, que vi pela primeira vez a claridade. Tão límpida nunca vi igual. Era tudo tão nítido, que eu pude entender um pouco certas relações entre textura e aparência. Toquei o azulejo, depois as minhas próprias roupas e seus farrapos. Que medo me deu ao me enxergar assim naquelas condições, dentro de uma casa tão limpa. Quase corri, e teria mesmo fugido dali, se a Dona da casa não tivesse me segurado em seu sorriso de lado.

Voltei para casa humilhada, adentrando mais e mais fundo na fumaça, ou assim era o meu desejo, de esconder-me. Em casa, eu vi minha mãe sentada, envergada, tentando enxergar suas linhas, e olhei as nossas próprias roupas.

Aquele delírio bateu forte em mim. Passei semanas costurando uma roupa que parecesse com a da Dona da casa iluminada, mas as imagens fugiam de mim. Escapavam para dentro da fumaça densa desses dias. Chorei, debruçada sobre os panos retalhados, ao som das cantigas das meninas na calçada. 

A Matinta e o SonhoOnde histórias criam vida. Descubra agora