PRÓLOGO: PRIMEIROS ENCONTROS?

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Sana poderia conceber a existência de um limbo, de acordo com todos os dados de seus estudos aprofundados sobre a realidade atômica da existência, e ela teria tempo para refletir sobre isso depois, mas agora o choque a impedia de montar linhas de raciocínio satisfatórias. Ela desviou os olhos do rosto confuso da mulher que se posicionava alguns passos a frente, e fitou o corredor que se estendia por metros, talvez quilômetros, até que se perdesse na escuridão. A japonesa piscou algumas vezes, esfregou as têmporas, mas a cena continuava a mesma. Um suspiro trêmulo escapou de seus lábios secos.

Movendo-se relutantemente para a esquerda, tocou o material estranho, parecido com aço, de uma das incontáveis portas. Era fria, e parecia não apresentar distinção alguma de qualquer outra. Um pensamento desesperador, talvez considerado insano por aqueles que não compartilhavam da mesma opinião de Sana, emergiu em sua mente.

- Multiverso... - A voz sussurrou, e por um segundo Sana se questionou se aquele som havia saído de sua própria boca. Era a única explicação, certo? A desconhecida não poderia simplesmente ter adivinhado o que se passava por sua cabeça...

Com um salto e um grito sufocado, ela sentiu a mão em seu ombro.

Um pouco trêmula pelo susto, ela se virou. Grandes olhos castanhos se fixaram nos seus, e ela sentiu um estranho sentimento eletrizante percorrer seus braços, causando uma série de arrepios.

- Multiverso. - A mulher repetiu. - Você também compartilha dessa ideia.

- Sim. - Sana murmurou, seus batimentos cardíacos se normalizando, ainda se perguntando como diabos a outra poderia saber. - Confesso que não era bem o que eu esperava. Digo... Uma sequência de portas? A ideia de múltiplas realidades sempre me pareceu mais complexa. - E fez uma careta.

A de cabelos vermelhos esboçou um sorriso esperto.

- Complexa, uh? Bem, de qualquer maneira, todo esse espaço ao nosso redor nem mesmo deve existir. É provável que você reconheça que a ambientação simples é uma tentativa de nosso subconsciente mortal em nos impedir de ficar loucas presenciando a verdadeira realidade. Devo dizer, no entanto, que O Criador disso aqui certamente deve se sentir magoado de não ter cumprido com suas expectativas...?

- Sana.

- Sana. - A coreana repetiu. - Sou Jihyo, e é um prazer conhecê-la no fim do mundo. - Uma risadinha baixa acompanhou as últimas palavras. - Ou, ao menos, na borda entre todos eles.

...

Um turbilhão de pensamentos invadia a mente de Sana, e tudo parecia extremamente barulhento apesar do silêncio sepulcral. Ela e Jihyo haviam trocado pouquíssimas frases nos últimos... minutos? Horas? Dias? Era difícil quantificar o tempo quando se estava em um lugar onde esse conceito não existia. Pelo que ela entendia, poderia retornar para sua casa mil anos no futuro ou um segundo depois do momento em que apareceu ali. Se ela pudesse retornar, é claro.

Jihyo confessava que a teoria do multiverso, que abrangia a existência de infinitas realidades paralelas, não havia sido sua primeira opção a se considerar. Afinal, ela era apenas uma entusiasta da complicada e polêmica física quântica. Não, Jihyo era uma mulher muito mais pragmática, e seu doutorado em química era prova disso. Nada de teorias loucas para a Park, apenas a velha e boa química que compunha o planeta Terra. Pesou a possibilidade daquilo ser uma ilusão pós-morte provocada pelas últimas substâncias e sinapses elétricas do seu cérebro, descartando-a em seguida.

O pensamento eclodiu, entretanto, no instante em que a mais alta, com seus cabelos castanhos desgrenhados, aparecera no corredor. Foi como uma lâmpada que se acendeu no fundo de sua mente, e Jihyo estranhou a urgência com que murmurou aquelas palavras.

- Multiverso...

Agora ali estavam elas, sentadas, ambas envolvidas demais em suas próprias ideias do que fazer a seguir. Haviam concordado, em primeiro lugar, em andar um pouco pelo corredor, apenas para confirmar que ele não possuía fim. E que todas as saídas pareciam não apresentar diferenças entre si.

Estavam fodidas.

...

Uma maleta repousava no colo de Sana. Após vasculhar aquela imensidão vazia, tinham retornado para o aposento que agora se referiam como A Caixa, e encontrado o objeto em um dos cantos apertados do local. A Minatozaki analisava os frascos cheios com um líquido transparente, os olhos semicerrados e a testa franzida.

- Você acha que pode ser uma espécie de sedativo? - Ela perguntou, tirando Jihyo de seus devaneios.

- Hum? O rótulo não diz algo sobre?

A japonesa negou.

- Consigo identificar algumas fórmulas, mas não faço a mínima ideia do que quer dizer.

A mulher de cabelos vermelhos pegou um dos vidros e leu atentamente a inscrição.

- Os compostos têm propriedades sedativas, porém... - Sana observou a expressão dela se tornar perplexa.

- O quê?

- Não é fácil explicar. Algumas combinações parecem inviáveis para mim, mas consigo reconhecer um tipo de alucinógeno. Ele não está sozinho, misturaram com uma substância muito forte para a dor. É meio bizarro, para falar a verdade. O alucinógeno estimula uma parte do cérebro responsável pela distinção da realidade, enquanto o derivado da morfina bloqueia, de certa forma, a percepção real dos sentidos. É como se fossem opostos... Como... Como... - O rosto dela pareceu se iluminar, e a japonesa se viu incapaz de desviar o olhar. - Meu Deus do céu, Sana. É como um projeto de bloqueador.

Seja lá qual fosse a incrível conclusão que Jihyo havia chegado com isso, a acadêmica de física não compreendia.

- Bloqueador?

A coreana parecia mais empolgada do que alguém perdida no limbo do universo devia estar. Ela retirou a maleta das mãos da outra, seus dedos passeando pelos frascos, a boca se mexendo sem emitir nenhum som. Arregalou os olhos.

- Um bloqueador... Durante o meu mestrado foi quando eu me interessei pela formação da realidade como a conhecemos, entende? Trabalhei alguns longos meses tentando descobrir se existia uma forma de quebrar essa parede... A parede que nos separa do mundo como ele é, em oposição ao pequeno espectro que enxergamos. Você deve saber, Sana, que nós só enxergamos uma parte minúscula da luz, e existem milhares de ondas que não captamos. Nós não enxergamos os raios de micro-ondas, o raio-x, e também não somos capazes de ouvir todos os sons que existem. Portanto, eu pensei: Há uma forma de remover essas limitações do ser humano? Esse é o conceito de um bloqueador. Nós nos livramos de quaisquer conexões mentais que nos impediam de ver a realidade, e agora nos encontramos em um plano diferente.

Sana sentiu seu estômago embrulhar.

- Você está sugerindo... que nos doparam com isso?

A Park concordou.

- Uma viagem de dimensões não seria simples assim. A aplicação de uma droga não faz ninguém sair do plano de um universo.

- A menos que não seja apenas isso.

A mulher de cabelos castanhos se virou para A Caixa. Todos os pelos de seu corpo se arrepiaram quando ela entendeu o que aquilo significava.

Sana já havia estudado sobre transportadores dentro do campo da física quântica. Transportadores de moléculas não eram uma coisa incomum, e estavam sendo estudados há algum tempo. Mas transportar algo da grandeza de um ser humano de um lugar a outro, de uma dimensão a outra...

Ela sentiu que ia explodir.

- Por que alguém faria uma coisa assim comigo? - Perguntou mais para si mesma.

Ambas retornaram a uma meditação silenciosa.

...

- Temos trinta frascos. - Jihyo murmurou. - E trinta seringas descartáveis.

- Quinze chances de voltar para casa?

- Quinze chances de voltar para casa.

Paradas em frente a uma porta aleatória, as mãos de Sana suavam na maçaneta.

E se eu nunca encontrar o caminho de volta? Ela pensou.

Então as duas entraram.

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