O sangue está em minhas mãos

34 3 0
                                    

Sabe aqueles dias que você acorda do lado errado da cama? Bom, hoje é um dia desses. A única coisa que me anima é que a Jess está voltando de viagem e vou poder revê-la. A conheço faz 2 anos e todo dia com a minha melhor amiga é incrível. Claro, a gente briga. Normalmente as brigas eram causadas pelo péssimo gosto por homem dela. A Jéssica sempre se apaixonava por um cara diferente e em absolutamente todas as vezes, esse cara se revelava ser um verdadeiro lixo. Como uma menina tão inteligente, linda e compreensiva como a Jess podia cair no papo desses caras? Eu não sei. "Agora é diferente, juro!", lembro dela dizendo. "Mas você sempre fala isso", eu retrucava. Bom, não adiantou. Ela está com esse cara há uns 2 meses e eles resolveram viajar nesse fim de semana. Argh, Pedro. Ele parece ótimo, é até bonitinho, mas... não sei. Tem alguma coisa nele que parece errada. Não sei se é por-

- Oi, Terra chamando Isa! – Fui arrancada do meu devaneio e tirei o fone de ouvido enquanto via um cara abanando as mãos à frente do meu rosto.

- Ah, oi Felipe. Tudo bem? – Não me leve a mal, eu adorava o Felipe, mas detestava quando era obrigada a tirar meus fones para conversar com alguém. Para ser sincera, principalmente com o Felipe. As coisas estavam meio estranhas desde que a gente se beijou numa festa da faculdade há duas semanas. Pra mim não significou nada. Na verdade, eu nem lembrava disso. A Jess que me contou a novidade no outro dia enquanto minha cabeça martelava de ressaca. Desde então, ele sempre ficava por perto e eu só pensava em como sair correndo. Timming perfeito!

- Jéssica! – Eu gritei da janela do ônibus enquanto ele estacionava. – Desculpa, Felipe. Preciso encontrar a Jess. – Admito que não foi minha melhor desculpa, mas assim que o ônibus parou, corri em direção dela.

- Amiga, você sentiu tanta saudade assim? – Pude escutar a Jéssica rindo enquanto minha cabeça estava cravada em seus ombros. Ela era somente 3cm mais alta que eu, mas quando nos abraçávamos, Jess descansava sua mão por cima da minha cabeça como uma mãe acolhe seu filho mais novo depois do primeiro dia de aula.

- Muita! E aproveitei para fugir do Felipe. – Jéssica riu e começou a me atualizar dos acontecimentos recentes e sobre como foi a viagem. Ela estava um pouco tensa, sentindo que o namorado estava se distanciando. Certamente é coisa da sua cabeça, eu pensei. O Pedro sempre estava por perto. Literalmente. Levantei minha cabeça e percebi que ele se aproximava. Ele parece ter percebido que eu o estava espiando e me lançou um olhar enigmático, com um relance de preocupação em seus olhos pretos. O relance foi tão rápido que duvidei do que meus olhos viram. Provavelmente foi coisa da minha imaginação, não teria porquê ele estar preocupado comigo. Ok, eu estava me sentindo mais tensa e negativa há umas semanas, mas eu não deixava que isso transparecesse.

- Jess, ele está vindo. – Murmurei e trocamos um olhar que dizia que essa conversa continuaria mais tarde.

- Oi, amor! – Disse Jess dando um selinho no Pedro, que me cumprimentou com um sorriso torto e um leve aceno com a cabeça.

Como de costume, andamos nós três em direção ao prédio da Veterinária. Pedro com o braço sobre os ombros da Jess e eu ao lado dela, de mãos dadas. Bem ao estilo de filme clichê em que o melhor amigo é apaixonado pela amiga, que está com outro – mas no caso eu era o melhor amigo. E eu não estava apaixonada pela Jess. Nem pelo Pedro, apesar de que na primeira vez que o vimos, eu certamente o achei bem atraente. Tudo bem, muito atraente. No entanto, sempre senti uma certa eletricidade vindo dele, algo estranho, como se meu corpo avisasse para tomar cuidado.

Normalmente as segundas-feiras são mais arrastadas, mas hoje estava pior que o normal. A cada 2h trocávamos de sala e cada professor parecia mais desanimado que o anterior.

- E se a gente sair hoje à noite? Vamos no barzinho aqui perto da facul. – Jess sugeriu enquanto estávamos no corredor indo para a próxima aula.

- Jéssica Santos sugerindo que a gente vá beber em plena segunda-feira tendo clínica amanhã 8h? To dentro. – Pedro disse, virando para mim assim que concluiu a sentença.

- Eu também? Não é tipo um encontro romântico não?

- Não, Isa. Pelos velhos tempos, vamos! – Jéssica pediu fazendo a típica carinha de cachorro sem dono que ela faz sempre que quer me convencer. Ela sabe que eu sempre cedo.

- Tudo bem, mas posso beber só uma cerveja. – Jess e Pedro sorriram maliciosamente.


 ֍

- Agora é realmente minha saideira, tchau gente! – Eu disse enquanto terminava de virar a 3ª dose de cachaça. Acabei bebendo mais que o planejado, tudo bem, mas precisava voltar agora. A cerveja ainda estava cheia, então tínhamos pelo mais meia hora de conversa fiada, mas comecei a ficar nervosa. "De novo não", pensei. Não tinha crise de ansiedade há alguns meses, mas pude sentir que ela se aproximava. Precisava sair o mais rápido possível e, por sorte, morava bem perto do Campus. Despedi-me dando um beijo na bochecha deles e sai correndo. Escutei a Jess resmungando alguma coisa para o Pedro, mas eu estava concentrada em chegar o mais rápido possível em casa.

Quanto mais eu me afastava do bar e me aproximava de casa, mais a ansiedade parecia me incapacitar. Por que isso estava acontecendo agora? Eu estava bem, feliz, rindo. Tentei pensar em algum gatilho que possa ter iniciado a crise, mas nada fazia sentido. Meu apartamento ficava há uns 2km do bar que estávamos, então me pareceu uma boa ideia correr para casa antes da crise piorar. Eu era bem rápida, então em menos de 15 minutos já estava chegando. Precisava apenas subir uma escadaria e ir até o final da rua sem saída em que eu morava. Quanto mais perto eu chegava, mais minha crise piorava. Precisei parar no meio das escadas para recuperar meu fôlego e tentar acalmar minha mente. E foi aí que escutei os passos.

Olhei em volta e não enxergava nada. O poste mais próximo estava há uns 30 metros de mim, criando apenas uma penumbra nas escadas. Concentrei-me para tomar um último fôlego e terminar de subir a escadaria, pois pelo menos a rua estava mais iluminada. Percebi que os passos também estavam ficando mais intensos e mais rápidos. A pessoa estava se aproximando. Corri o mais rápido que consegui, mas tropecei em um paralelepípedo solto no chão. E então, tudo aconteceu ao mesmo tempo.

Meus óculos caíram a quase um metro de mim, transformando tudo ao meu redor em um grande borrão. Eu não enxergava um palmo a minha frente e comecei a sentir uma grande ardência vinda da minha perna. Minha calça jeans havia rasgado e agora sangue jorrada do meu joelho machucado. Os passos diminuíram sua intensidade. Pude ver que era um cara, de uns 21 anos, forte e... bêbado. Muito bêbado. Minha voz havia sumido. Tentei gritar, mas saía apenas uma voz baixa, fanhosa e ininteligível. Arrastei-me para longe, tentado encontrar meu celular. Dor. O homem, que havia se aproximado o suficiente, pisou em minha mão para que eu não ligasse para ninguém. Lágrimas rolavam no meu rosto enquanto tentava lembrar das aulas de defesa pessoal, mas eu estava paralisada. O homem balbuciou algumas palavras que eu não entendi enquanto se abaixava para pegar meu rosto em suas mãos. Eu não escutava mais nada além do meu coração retumbando em meus ouvidos. Não conseguia pensar em nada, não conseguia gritar, não conseguia me mexer, apenas fechei meus olhos com a maior força possível e torci para que aquilo acabasse. Então ele começou a descer suas mãos para minha blusa. Escutei um estalo e barulhos de botões ricocheteando no chão. Ele havia rasgado minha blusa. Suas mãos desciam do meu peito, passando pela minha cintura, pela minha barriga até que... nada. Ele parou. Eu abri os olhos somente a tempo de ver um olhar vidrado, assustado e distante. Empurrei-o para longe e ele começou a convulsionar na minha frente. O que estava acontecendo? Escutei mais passos. Pedro.

InaneOnde histórias criam vida. Descubra agora