Luara
Acabei de fazer as malas...
AS malas?
Luara, não seja mentirosa, uai!
Tudo que tenho coube em UMA mala — dois vestidos longos, duas saias compridas, quatro blusinhas, duas blusas de frio, dois pijamas, meia dúzia de calcinhas, três pares de meias, dois sutiãs, duas toalhas de banho, itens de higiene e três livros.
Vou embora de Riachinho do Meio. Estou indo em busca dos meus sonhos. Enfim!
Levanto da cama, meu corpo pende para o lado esquerdo, desequilibrando-me. Escoro na parede, localizando minhas botas com solado e palmilhas especiais que estão perto da cama da Leilinha. Caminho mancando até alcançá-las. Não posso ficar muito tempo sem elas, senão sinto muitas dores nos joelhos e no quadril.
Nasci com a perna esquerda mais curta do que a direita. São seis centímetros de diferença entre uma e outra. A dismetria foi causada por uma má-formação fetal, é o que os médicos me falaram durante minha vida todinha. Um deles me disse também que eu poderia ter sido operada na infância, mas que agora, na idade adulta, uma cirurgia seria muito complicada, pois todos meus ossos estão completamente desenvolvidos.
Amarro os cadarços das botas, prendendo a respiração para não desatar num berreiro igual fazem os pequenos que eu cuido. Não gosto de pensar ou falar sobre minha deficiência. Começa a me dar tristeza. E aprendi que chorar não adianta de nada. A gente tem sempre que achar um jeito de enxergar o lado bom das situações e seguir em frente.
— Já está pronta, Lua? — Joana entra no quarto que divido com Leilinha e Talita, trazendo Juninho pela mão. Esses são os últimos dias do menino aqui. Ele está em processo de adoção. Meu bebezim terá a sorte que nunca tive: será acolhido por uma família.
— Tô sim, Jô. — Fico de pé, puxando minha saia preta até que ela cubra as botas e fique um tiquim longe do chão. — A dona Marilza ainda não chegou? Não quero ir embora sem me despedir dela.
— Ela disse que vai te encontrar na rodoviária. Acho que está preparando um lanchinho para você levar.
— Cê vai ficar bem sem mim? Tem certeza? A Rita só volta da licença maternidade no mês que vem.
Sinto um carinho enorme pela Joana. E sei que essa senhora miúda, mas dona de um coração robusto, gosta muito de mim também. Acho que pessoas que passam por grandes sofrimentos na vida se atraem e criam laços fortes. Eu perdi meus pais antes de conhecê-los. Minha querida Jô perdeu o amor de sua vida após oito anos de um lindo romance.
— A dona Clarice, filha do seu Alceu, vai me auxiliar a partir de amanhã, não se preocupe, querida. — Joana faz um chamego nos meus cabelos; e eu abro um sorriso. Amo receber um carinho! — Você já me ajudou demais ao longo desses anos. E era para ter saído do acolhimento há um ano.
Espanto minhas sensações ruins com um sorriso. Não deixo Joana saber da minha aflição quando penso no que encontrarei quando sair daqui. Vivo neste lugar desde que tinha cinco dias de nascida. Tirando as idas à escola, as consultas com o ortopedista e as fisioterapias que a dona Marilza pagou, meu mundo sempre se resumiu aos seis cômodos dessa casa de acolhimento.
— Tô tão feliz que eu vou pra São Paulo, Jô! — Torço uma mecha de cabelos e mordo o canto da minha boca. — É uma bênção que sua sobrinha tá precisando de uma babá pra bebê dela.
A Joana é paulista (e meu fascínio por São Paulo nasceu de ouvir suas histórias sobre a "Terra da Garoa"). Veio morar em Riachinho do Meio, no sul de Minas Gerais, faz vinte anos — Jô se tornou assistente da antiga diretora da Casa Lar Anjo do Amor poucos meses antes de me encontrar, recém-nascida, chorando, do lado de fora da casa. Ela largou sua vida em São Paulo — seus pais, sua irmã, seus sobrinhos e seu trabalho como assistente social — assim que seu noivo Ronaldo morreu atropelado por um motorista bêbado. O acidente aconteceu na semana em que eles se casariam.
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Guarde-me em seus braços [DEGUSTAÇÃO]
RomanceAbandonada pela mãe ao nascer e lidando com os desafios impostos por uma dismetria congênita, Luara cresceu numa casa de acolhimento, no interior de Minas Gerais. Aos 19 anos, ela tem a oportunidade de realizar seu grande sonho: morar em São Paulo e...