Prólogo
Um ano antes...
Luara
Meu mundo inteiro está dentro desta sala. Todas as pessoas que amo estão ao meu redor, sorrindo para mim. Hoje faço dezoito anos. Armaria, o tempo passou rápido dimais da conta! Outro dia mesmo eu estava brincando de boneca com a Bel e a Rafa, as meninas que moravam comigo na casa de acolhimento. Agora nenhuma das duas está mais aqui. Elas foram adotadas faz muitos anos.
Eu fui a única que ficou daquela época.
E está chegando o momento de também partir.
Um pavor danado de ruim agarra meu peito. Não vou pensar nesse trem no dia do meu aniversário. Tenho ainda mais um cadim de tempo antes de ir embora da Casa Lar Anjo do Amor.
— GendeDeus, vamo cantar logo esse parabéns que eu tô varada de vontade de comer o bolo que a dona Marilza fez! — digo, espantando os sentimentos maus, parada atrás da mesa coberta com laços de papel crepom rosa.
Joana, a diretora da Casa, ri ao lado da dona Marilza, nossa voluntária mais antiga, que está segurando Juninho no colo, enquanto Leilinha, Talita e Nelsinho tentam alcançar as bandejas de brigadeiros em cima da mesa, mas Rita, nossa cozinheira e a mais nova grávida de Riachinho do Meio, os impede.
— Você tem uma lombriga morando nessa barriga, não é possível, Luara! — Joana sacode a cabeça, mas não espanta o sorriso. — Comeu metade da bandeja de sequilhos e ainda tem espaço para o bolo?!
— Eu amo doce, uai!
— A menina pode abusá, Joana. É magrilin. Nóis é que temo que fechá a boca e apertá a pança. — Dona Marilza racha os bicos.
— É mió cantar logo esse parabéns porque num vô consegui segurá esses fiis di Deus. — Rita cata os três serelepes um tiquim antes de eles pegarem os brigadeiros.
Joana, finalmente, puxa o coro de "Parabéns Pra Você". Todos cantam com entusiasmo. E eu também. Adoro uma festa, sô!
No final da cantoria, depois de todos entoarem (menos o bebê Juninho) "Luara, Luara, Luara", Joana fala, com o olhar carinhoso que me dá um quentinho gostoso no coração:
— Vamos, Lua, faça um pedido antes de apagar as velas.
Sorrio largo. Eu estava ansiosa por esse momento.
— Vou fazer logo três pra ter mais garantia de realizar.
Fecho os olhos. Não levo nadinha para pensar nos meus pedidos. Eu decorei cada um deles de tanto pedir a Deus todas as noites.
"Eu quero ir pra São Paulo, conhecer aquele lugar que tem uma muntuêra de gente. Quero fazer faculdade de Medicina Veterinária e tratar dos bichinhos. E... eu quero viver um grande amor igual ao que a Joana viveu. Mas tem que ter final feliz. Porque sonho que alguém me guarde em seus braços pra sempre... como minha mãe não pôde fazer."
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Glossário
1. Armaria: Ave Maria
2. Magrilin: muito magro
3. Rachar os bicos: rir muito
4. Trem: um objeto/ uma coisa
5. Cadim: um pouquinho
6. GendeDeus: gente de Deus
7. Varada de vontade: com muita vontade
8. Tiquim: um pouquinho
9. Muntuêra: grande quantidade de algo
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Guarde-me em seus braços [DEGUSTAÇÃO]
RomansaAbandonada pela mãe ao nascer e lidando com os desafios impostos por uma dismetria congênita, Luara cresceu numa casa de acolhimento, no interior de Minas Gerais. Aos 19 anos, ela tem a oportunidade de realizar seu grande sonho: morar em São Paulo e...