. two .

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Two, Sleeping at Last.

Pintando levemente aquele quadro retangular que preencheria a vida de algum entusiasta das artes, Luísa, sem querer, deixou que o pincel caísse no chão. A bagunça a perturbou e de imediato sentiu irritação por estar se comportando como uma adolescente rebelde ao obrigar a própria consciência a finalizar aquele amontoado de cores que não parecia nem um pouco aceitável.

Se desfazendo do pincel ao colocá-lo em um vidro repleto de solvente, ela não espera reviver tão brevemente aquela obra. Com o auxílio de um papel, ela limpa a paleta por completo e deixa-a sobre a mesa de apoio ao lado do cavalete. Já não existe mais a memória das cores, porque devolveu todos os tubos de tinta para a maleta. No futuro, caso retome a obra, o trabalho será árduo.

Retirando o avental com mais ansiedade que o normal, joga-o sobre o banco. Encarando novamente aquele quadro inacabado, ela respira com profundidade, enquanto mantém as mãos inquietas mexendo nos cabelos, que são escovados rapidamente para trás. Não pode permitir que a consciência exausta seja capaz de atrapalhar o processo criativo e estragar o que estava pintando — apesar de já ter compreendido que é exatamente isso que fez.

Incompleto.

Incompleta.

Sentada no sofá, que agora fica próximo da janela, ela põe os cotovelos sobre os joelhos e chora compulsivamente. É possível ouvi-la soluçar. Aquela angústia e dor são inevitáveis. Por mais que quisesse apagar as memórias, elas não deixariam de existir tão facilmente. As histórias são parte dela, da trajetória e dos anseios que carrega nas entranhas da alma.

O sol ainda está alto, o dia de primavera é lindo lá fora, mas ela quer ficar ali, consigo mesma, tentando encontrar palavras capazes de consolar o inexplicável. A culpa que carrega de outrem.

— Você parece cansada. Quando foi que comeu pela última vez?

Indo ao encontro dela, Otto abraça-a sem pedir permissão. O coração dela é a casa dele, quer que a todo o momento ela se sinta em paz e feliz, mas isso nem sempre acontece. As memórias... Ah, aquelas memórias carregadas de arrependimento vez que outra chegam. Ele quer que ela fique ao lado dele pelo tempo necessário, mas ela é insistente em recusar o auxílio e muitas vezes prefere dizer que irá embora para bem longe.

Com a cabeça dela logo abaixo do pescoço, ele a mantém perto do coração. Pelo cheiro forte de tinta, o avanço da pintura sobre a tela e as olheiras, ele deduz que ela provavelmente não havia saído de dentro da sala de artes.

Naquela semana, Poliana ficaria na casa da tia, tal qual vinha fazendo há pelo menos cinco meses. A alternância de casas foi bastante discutida no começo, até o dia em que Otto permitiu que a filha passasse uma semana do mês na casa dela, assim como alguns finais de semana também.

Já é final de tarde, eles haviam combinado na noite anterior que o jantar será realizado na casa dela, num pedido de Poliana, que apesar de passar a semana na casa da tia, quer que o pai também esteja presente.

Assim que chegou na casa, ele foi recebido por Antônio, que comunicou a preocupação com Luísa. Muito atarefado, como sempre, poucas explicações concedeu, mas informou sobre a falta do café da manhã e a intensa dedicação nos últimos dias.

— Posso ajudar? — Questionou ele, preocupado com ela e as lágrimas que pareciam não cessar. — Se tem algo errado, você pode contar comigo.

Na implicância quase sutil, Luísa preferia manter distante aquilo que sentia, apesar de saber que ele entregaria o coração para ela, caso fosse preciso. Enquanto ainda a ouvia chorar, ele relembra do dia em que a encontrou vagando pelo jardim, completamente desamparada e ansiada, como se quisesse buscar respostas. O olhar distante era o reflexo das circunstâncias de uma vida deixada para trás, após um ataque certeiro, um tiro no meio do peito que ceifou a vida daquele que ela acreditava amar.

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