. overture .

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Tudo começa com nossos olhos acostumados ao escuro, para que seja possível enxergar aquilo a se dizer com as imagens que crio na minha imaginação. A arte do pintar, criar, conceber e sonhar. Todas elas correlatadas, girando numa cabeça insistente e que muitas vezes se comporta de forma impaciente aos estímulos externos. Nem sempre todas as pessoas irão compreender o que quero dizer com cada cor, linha fina ou ponto final de uma tão desejada delimitação, mas é justamente para isso que serve a arte e cada detalhe de uma composição incessante.

"Então a mente foi feita para iluminar o coração", me disse dia desses, enquanto observava a minha ansiedade ao mover as mãos de forma involuntária. Pensei no que queria me dizer com aquilo, mas não respondi, pois preferi guardar junto de mim aquela observação atenciosa.

E é verdade.

A mente foi feita para iluminar o coração.

Tal qual as palavras são capazes de provocar estímulos, minhas mais recentes criações também estavam apresentando um caminho quase encorajador. Receio dizer que, na maioria das vezes em que ele está junto de mim, eu consigo desenvolver as imagens abstratas de um jeito diferente. São as excitações neurais que me guiam a partir das sensações que sinto na presença dele.

Bastante quieto, observador, tranquilo, com um tablet em mãos, verificando o funcionamento de um evento qualquer. Embora ele acredite estar invisível ali, eu o percebo como um todo, que é exatamente o que ele é. O que seria de mim sem me permitir sentir meus hormônios se movimentando dentro do corpo, sendo capazes de controlar, inclusive, minha arte?

Posso dizer que eu não seria muito.

Mesmo depois de tudo o que vimos, nós mal tivemos um vislumbre de como se explica a arquitetura da alma. O universo começou com os nossos olhos fechados, tal qual minhas próprias criações e impressões delicadamente inseridas em telas de algodão. O próprio universo começou com nossos olhos fechados, sem qualquer conhecimento dos planetas, constelações e as estrelas.

Assim que nossa união se deu, tudo tornou-se mais ordeiro. Não existia sequer a pretensão de unirmos um ao outro, mas reivindicamos nossas terras. Deixando para trás a angústia e o peso dos dias onde não enxergávamos a fundo, mesmo na analogia dos nossos olhos fechados, nós esculpimos nossos nomes na superfície da história.

"Até as mãos ficarem amarradas", diria Poliana. Segundo ela, apesar de não termos nascido um para o outro, nos tornamos únicos por causa dela. Por ela. Para ela. Pela obstinada gravidade. Tal qual dois polos magnéticos controlados pela força física empregada ao movimento dos corpos. Assim como o solvente é capaz de diluir a tinta, transformando os elementos em nada mais que apenas resquícios.

Mesmo depois de tudo o que vimos, nós mal tivemos um vislumbre de como explicar como tudo começou. Foi na dor. Na ascensão e queda. Caímos e perdemos juntos. Com as ondas do oceano nós inalamos, exalamos e reiniciamos, toda coisa viva está nesse constante estado de inquietação, que nos mantém vivos perante tudo aquilo que sequer podemos prever. Mesmo depois de toda nossa história, nós mal tivemos um vislumbre de como explicar exatamente como tudo aconteceu, afinal ninguém jamais imagina a exata precisão da arquitetura da alma.

Aquela imagem era o retrato pleno do estabelecido meses atrás, bastante desajeitadamente, num sorrateiro suspiro guiado pelo desequilíbrio do encontro das estrelas no universo. De fundo preto, com exatas estrelas pinceladas delicadamente, quase na ausência do ar, porque quando o movimento da respiração acontece, poderia estremecer a mão. E então foi naquele instante que organizei cada ponto brilhante. Na falta repentina do ar, preso em meus pulmões para que ajustasse exatamente onde deveriam ficar.

Quando ele me contou sobre as constelações e como queria ensinar Poliana a manipular um telescópio, tal qual o pai havia feito com ele quando ainda era um menino, meu coração apertou-se. Otto provavelmente ensinaria sobre o caminho de casa que tanto ouviu o pai falar quando criança. Eu consegui observar os olhos dele diferentes, lacrimejando, enquanto sentia aquele pulsar insistente. Ele queria ensinar aquela analogia para ela, para que sempre lembrasse que estaremos lá quando precisar.

Diferente de como os pais dele estiveram.

Diferente até dos meus.

E dos dela.

Todos haviam ficado para trás e aquela semelhança nos trazia uma sensação confortável, porque nós três tínhamos algo em comum: as perdas, a dor e o sofrimento, e precisamos trabalhar muito bem todas essas dores em conjunto, quase como numa reconstrução.

Com os olhos fechados, retomo minha obra. Observo a claridade vinda da janela que dá para o jardim, respiro profundamente aquele ar gelado e aconchegante, que me trouxe ainda mais inspiração. Ao fundo, vejo Poliana sentada junto dele. Otto estranhamente está junto dela no chão. Eu não podia ouvi-los falar, mas estão rindo, enquanto ela gesticula sobre algo que eu sequer imagino o que seja.

Sinto amor. Sorrio brevemente e pego novamente o pincel.

Deixando os devaneios para trás, me concentro tal qual havia feito antes de me perder em pensamentos vagos e na imagem do todo. Aquele inexplicável sentimento de recomeço, exatamente como quando o universo começou, enquanto tínhamos nossos olhos fechados e sem qualquer vislumbre de como se explica, porque jamais seremos capazes de entender toda uma composição.

Overture, Sleeping At Last.

Anne Lindt
• março, 2021

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