Capítulo 01

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O palazzo, como chamavam o lugar onde eu agora morava, ficava em frente ao maior canal de Veneza, de onde eu podia vislumbrar, das janelas altas de meu quarto, a agitação da cidade, os caminhos labirínticos que a água fazia, e as gôndolas que por ali passeavam, sempre, incansáveis, como folhas deslizando sobre a superfície calma de um córrego.

Ali tudo era feito de grande beleza: canais cortados por pontes em arcos, igrejas altas, com vidrais coloridos e torres se projetando para o céu como se tentassem desafiar Deus com sua opulência; casas de arquitetura intrincada e harmoniosa, feitas de pedras pesadas que se mantinham unidas como se forças da natureza assim desejassem. A quantidade de pessoas andando pelas ruas – algumas com roupas de tecido agradável ao olhar, cheias de pequenos detalhes, como babados e broches com os quais eu não estava acostumado, e outras com não mais do que panos sujos e rasgados, os pés de fora. Eu sentia como se jamais pudesse acostumar-me a tantas cores e formas.

Quando acordei de meu vergonhoso desmaio, percebi-me deitado em uma cama enorme, maior do que todas as que eu já havia visto, e era macio e confortável, tanto, que eu desejei permanecer deitado para sempre, entre os travesseiros brancos de plumas e lençóis com cheiro de lavanda. O quarto onde eu estava era ainda mais magnífico: com tapeçarias nas paredes; um armário grande com portas de madeira cheias de entalhes intrincados e complexos; um espelho que mostrava todo meu corpo e cujas bordas talhadas a ouro branco pareciam reluzir em suas formas de anjos e flores quando a luz entrava através dos vitrais das janelas.

Percebi também que estava limpo e perfumado. Toquei meus cabelos e senti-os como seda em minhas mãos; toquei minha pele e era como tocar um pêssego maduro da estação. Sorri com isso. Já não aguentava mais o odor desagradável que se impregnara em meu corpo desde que fui raptado, muito pior do que o dos caçadores quando voltavam sujos de sangue de urso e enfurnavam-se nas tabernas, entupindo-se de álcool e gordura de carnes de ovelha e porco.

Havia uma senhora, de aparência idosa e roupas humildes, no quarto, e ela soltou um gritinho abafado ao ver-me acordado. Tomei um susto também, mas consegui manter-me impassível ao encará-la. Meus machucados não latejavam mais. Na verdade, não sentia mais dor alguma, e sorri novamente por isso, esquecido da mulher que, depois de falar algo que eu não entendi, saiu do quarto. Percebi também que estava vestido com um tecido fino e liso, tão resvaladio que lambia meu corpo com uma suavidade deliciosa.

Não demorou para que a porta abrisse de novo, e era o homem de olhos verdes que entrava no quarto, com a mesma senhora de antes em seu encalço. Ele parou a alguns passos da porta, encarando-me daquele jeito que parecia me despir a alma pela forma como seus olhos brilhavam. Desviei timidamente o olhar, mordendo o lábio inferior. Só naquele momento eu reparei nele mais nitidamente, agora que meus olhos não estavam inchados pelo choro e minha mente cansada demais para guardar os detalhes.

Ele vestia-se de veludo e linho bem cortado em tom de marrom e preto, um ar sóbrio. Era deslumbrantemente alto. Não tão alto quanto meu pai, mas de uma altura que impunha respeito, e fazia com que eu me lembrasse do meu tamanho miserável. Seu rosto era de um maxilar forte, lábios proporcionalmente cheios, que combinavam com o nariz reto e bonito. O rosto era grave e magnético.

Lembrei-me de meu pai, e de como ele ficaria furioso ao ver-me abaixando o olhar daquele jeito vulnerável e constrangido, então olhei novamente para o homem, com o queixo erguido e certa petulância em meus olhos cinzentos. Esperei que ele falasse, o que não demorou a acontecer. O homem sorriu como se não me levasse a sério.

"Você finalmente acordou. Já estava preocupado que permanecesse adormecido para todo sempre." Ele falou em grego, aproximando-se da cama e sentando-se de lado sobre o colchão, sem desgrudar os olhos de mim, escrutinando-me como se esperasse encontrar algo fora do lugar. Minhas bochechas latejaram com a avaliação minuciosa.

Era Uma Vez em Veneza ● DrarryOnde histórias criam vida. Descubra agora