• EXTRA pt. 02 •

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As semanas passaram de uma forma estranha depois daquela noite em que Marino tocou-me como eu jamais imaginei ter de experimentar de novo. Eu repassava mentalmente as lembranças de seus toques em momentos em que me distraía sozinho e tremia involuntariamente enquanto esperava a chegada da noite e, consequentemente, a chegada dele.

Ele sempre vinha, todas as noites, porém, não me tocou em nenhuma delas. Ele vinha e mantinha uma distância confortável entre nós. Primeiro ele me assistia dançar e tocar; e eu invariavelmente errava um passo ou uma letra toda a vez que meus olhos se encontravam com seus azul-cerúleos em tons frios.

Quando eu descia, sentava ao seu lado, envergonhado demais para olhá-lo de queixo erguido, mas ele apenas conversava comigo. Mesmo quando a casa se tornava mais silenciosa, ficávamos apenas nós e poucas pessoas no salão suntuoso com cheiro de rosas vermelhas e incensos adocicados. Às vezes passávamos a noite inteira juntos, em outras ele partia pela madrugada, sumindo pelas sombras noturnas da Sereníssima.

Em poucos dias eu me vi interessado em tudo que ele tinha para me contar.

Eu ri irônico quando ele contou que já havia sido um pirata do mediterrâneo, sem acreditar realmente. Mas, depois que ele partiu, fiquei me perguntando se seria ou não verdade. Ele tinha dezenas de histórias para contar. Já havia passado por inúmeros lugares, inúmeros feudos, inúmeras cidades do distante Império Bizantino. Também me contava histórias antigas que não eram suas, lendas, guerras, cidades perdidas pelo tempo.

Eu me via fascinado pela entonação suave e calma que escapava de seus lábios bem-desenhados enquanto narrava Grécia Antiga, Roma, As Cruzadas, batalhas no Mediterrâneo e tudo que havia para saber. Eu cheguei a pensar que poderia descobrir o mundo através de suas palavras. Quando dei por mim, já me sentava bem perto dele e deixava que ele acariciasse minha mão enquanto falava. Eu lhe enchia de perguntas impertinentes, as quais, entretanto, não pareciam incomodá-lo.

Houve uma noite em que ele não apareceu, e eu me senti estranhamente desapontado. Se fosse antes, eu teria vibrado, mas naquela noite me senti sozinho, com um frio inexorável por mais que eu me aconchegasse perto da lareira. Eu não queria admitir, mas sentia saudades.

Marino apareceu no dia seguinte e acariciou minha bochecha quando me aproximei dele correndo, como um garoto impulsivo cheio de expectativa. Isso fez meu corpo retrair, e ele retirou a mão lentamente, encarando-me com atenção. Minha bochecha formigou onde ele havia tocado, e fiquei aliviado pelo fim do toque.

"Por que não veio ontem?" Perguntei, desviando o olhar assim que nos sentamos no sofá em um canto mais distante que parecia ter-se tornado nosso.

"Tive alguns contratempos." Foi tudo que ele disse. Desejei saber mais, porém não tive coragem de perguntar. Foi nessa noite que ele inverteu o jogo e começou a perguntar sobre mim. Sobre minha vida, meus gostos, meus anseios, tudo. Todo mínimo detalhe, ele queria saber, e eu fui contando, porque ninguém até aquele momento havia se interessado por uma vida tão medíocre quanto a minha. E justamente Marino, que havia visto tanto, sabia tanto, e tinha uma vida tão interessante, queria saber de mim.

Não demorou para que, numa madrugada praticamente fria no salão, eu acabasse narrando como havia acabado em Veneza. Como meus pais haviam chorado para que não me levassem como pagamento da dívida que haviam adquirido com o mercador inescrupuloso de nossa pequena cidade litorânea. Meus olhos se encheram de água, e eu não me importei em me agarrar às roupas dele e esconder meu rosto em seu peito, umedecendo-o com meu choro.

Era Uma Vez em Veneza ● DrarryOnde histórias criam vida. Descubra agora