conversas com a morte I

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entre desencontros e tropeços
eu a encaro nos olhos e a vejo
levar, traiçoeira, todas as rosas
desabotoar conversas,
acabar com as rodas de samba
e a felicidade dos homens distraídos.

o motivo, lhe pergunto, enquanto corre pelo mundo - e contra o tempo.
— é assim que as coisas são e sempre foram, não há requisito. carrego o que é triste, amargo-ouro e o que é bonito.
— tudo o que é meu já foi levado, atrasado, esquecido. dê-me séculos e todos os meus pensamentos serão pó varrido por debaixo da terra.
— já viveu sem eles, não se lembra?
— às vezes gostaria de me lembrar o que é não sentir nada.
— siga-me e entenderá, se quiser.
— tudo o que me pertencia foi tirado pelas suas mãos.
— e elas estão vazias, não estão?

em suas mãos calejadas, enxergo todas as dores intrínsecas. saudade, identifico, principalmente saudade. seus olhos então se adocicam, tão comuns à todos em que confiei sem pestanejar. com o passar dos milênios, ela naturalizou-se de certa forma que sua armadura cruel, empoeirada, foi transformada em pele  fina, como asas de inseto.

— humanos matam uns aos outros sem qualquer ajuda da cadeia alimentar. destroem-se por motivos banais, encarregam milhares de microorganismos ao trabalho fúnebre incessante.
— achava que a Morte acreditaria mais na humanidade do que nós mesmos. afinal, por que continua a nos visitar?
— não há nenhuma lição para ser tirada de mim, criança. sou apenas o vazio, a ausência de vida. apesar de escutar pacientemente todas as teorias e contestações de "vida após a morte", sinto-lhe dizer que a democracia verdadeira só pode ser executada por mim. todos vocês, numa maleabilidade invejável, sabem ser bons e maus de acordo com a óptica, protótipos de camaleões sociais. mesmo assim, ao fim do dia, cada um caminha pela mesma estrada, ao meu lado. não gosto de passar meus dias em solidão e vocês nunca souberam lidar comigo até que não há mais tempo de adiar nosso encontro. é um ofício, no mínimo, curioso.
— então não há sentido nisso tudo? todos os dias em que pensei o que sentiria ao encontrá-la e agora...
— parece que me ignora completamente até mesmo quando impossível, humano! dei-te uma vida inteira para sentir, para provar, para chorar e gritar o quanto quisesse.
para errar, perdoar e esquecer. o céu estrelado e o entardecer, a risada incontrolável e o choro acalentado, a amizade de outros animais, a natureza os fornecendo muito mais do que deveria... todos os dias, a presença de coisas microscópicas construía seu sentido. se há resposta,
está longe de ser silenciosa, distante, grandiosa demais. vocês são a prova disso.

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