ao meu avô

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soubemos da sua partida por telefone e desde então vejo minha mãe fechar os olhos e respirar bem fundo antes de atendê-lo. por alguns dias, as faces se endureceram, palavras incompletas, corações parados: uma parte nossa se foi também.
oferecemos lenços, abraços, carinho numa tentativa falha de conforto maternal, mas nenhuma de nós sabia interpretar esse papel improvisado. ninguém sabe. parecia que o mundo inteiro sentia sua ausência: as nuvens secaram, as rodovias se tornaram sem saída, o tempo não existia mais.
encarei os rostos contorcidos e enxuguei lágrimas alheias, mas não chorei por alguns anos, o que me pareceu, na época, um atestado de insensibilidade. não fui ao seu enterro e me senti ainda mais distante. não estive nos seus últimos momentos, aqueles mais vulneráveis, que faziam mamãe pular o jantar por alguns dias, a boca ainda sentindo o gosto de comida de hospital. não me despedi. pela idade, meus pais deduziram que seria melhor me manter longe de qualquer memória sua que não fosse sorrindo. e eu nunca fui tão agradecida.
nas minhas lembranças, você ainda é o melhor cortador de laranja que existe, sempre nos guardando a maior parte. sorri com os olhos, mas não os fecha, só se suas músicas preferidas tocarem no rádio. o ritual do almoço, às vezes repetido por minha mãe, a faz rir baixinho, deixando cicatrizar essa ferida inevitável que você deixou. "igualzinha a ele" ela brinca. é indubitavelmente sua filha. são as mesmas mãos, os olhos cansados, a coragem.
te conheço em todas as versões que vieram antes de mim. aos treze, sinto as pernas cansadas de ser retirante, fruto da pobreza e da violência doméstica, carregando nas mãos o sussurro do amor de mãe. aos quinze, vejo Brasília se tornar gigante aos olhos pernambucanos de quem só conhecia o bairro da casa amarela. aos vinte, a dor nas costas me maltrata, o sol intensifica o cansaço, os tijolos parecem pesados demais para tanta miséria. aos quarenta, me vejo com quatro filhos pequenos e nenhum carimbo na carteira, a bebida é o que me mantém trabalhando. aos sessenta, os cabelos e os netos denunciam minha idade e a comida é farta, anunciando dias silenciosos e felizes.
foi nos teus braços que caí ao aprender a andar. foi teu carinho demorado na mão que apressei, subestimei tantas vezes, ansiosa pra brincar na rua. foi você quem me ensinou que o silêncio é um dos lugares mais confortáveis pra se partilhar uma conversa. quando o mundo pesa, destranco o portão e te vejo ali, contando os carros. te peço a benção e me encaixo ao seu lado. é assim que te tenho, tão eterno quanto numa fotografia. não chorei quando você se foi, mas qualquer lembrança sua me aquece. não me esqueço da sua voz. te carrego pra todos os cantos desse mundo. não há morte enquanto se vive no coração de alguém. e você vive em todos nós.
vovó nunca esteve tão lúcida. mamãe guarda suas aparições em sonho como se guardariam estrelas caso se descolassem do céu. minhas irmãs voaram. meu amor também é joão e sabe que quando choro sem motivo, é você. me sinto tão crescida, vô. gostaria de mais uma conversa contigo. acendemos uma vela hoje, em teu nome. são seis anos, mas parece uma vida inteira de saudade.
espero que esteja rodeado de laranjeiras.
pra sempre, sua joia.

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