ISAVE

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FALTAVAM DEZ MINUTOS PARA AS quatro horas da manhã quando o alarme central da cidade soou e se alastrou pela casa obstinadamente. O infeliz responsável por isso, certamente, tinha a intenção de nos fazer perder a audição. Era uma desgraçada certeza.

Levei minhas mãos de forma instintiva até os ouvidos e esperei o som diminuir até restar o zumbir persistente, o qual me acompanharia pelos próximos dez minutos.

Precisava me acostumar a acordar com a sirene. Até o dia anterior, poderia me dar ao luxo de esquecê-la — por meia hora a mais — enquanto me cobria com as cobertas marrons de meu quarto e voltava a dormir. Infelizmente, a partir daquele momento, esse seria o meu chamado pelo restante da vida. O que para mim ainda poderia ser por muito tempo, porque eu mal havia acabado de completar dezessete anos: a maior idade em Isave. Mesmo contra a expectativa de vida dos moradores da branca, eu esperava viver mais uns trinta ou até mesmo quarenta anos, se tivesse sorte.

Isave era um país pequeno, focado sua economia inteiramente na agropecuária e horticultura, localizado no leste do Canadá. Havia ganhado independência da coroa britânica, após uma rebelião. O levante culminou na morte de algumas centenas de pessoas e uma guerra memorável da colônia contra a metrópole.

Demarcava-se por uma parte da antiga Ontário, toda a Quebec e os estados ao leste canadense. Nosso idioma oficial é o Francês, embora tenhamos muitos falantes da língua inglesa vivendo em nosso solo. A maioria veio com o sonho de uma nova vida, mas encontrou um governo cruel de um monarca usurpador do trono. Aquele escolhido pelo povo foi morto em praça pública, apenas para demonstrar poder. Apesar de ninguém falar disso na branca, não havia se passado nem mesmo duzentos anos desde o ocorrido. A maioria fazia questão de não comentar, porque suas vidas dependiam de seu silêncio.

De lá para cá, a monarquia seguiu o rumo de passagem de pai para filho e chegamos na terceira geração dos "tronos de sangue", como é conhecida a família real. O nosso rei atual é visto por todos como um dos piores de seu tempo e certamente o seu filho seria tão ruim quanto o pai e o avô — que deu início em toda essa história.

Esperei as luzes centrais acenderem, mas isso não aconteceu naquele dia. Provavelmente inventariam uma desculpa sobre ter acontecido mais algum problema no gerador da cidade e essa desculpa se perpetuaria por — pelo menos — uns quatro a cinco dias. Geralmente diziam ser defeito no maquinário ou na usina distribuidora, mas era o nosso sofrimento que permitia a mordomia das outras zonas. Como sempre, aqueles com pouco alimentam a ganância dos abastados.

Tateei a mesa de cabeceira e encontrei uma vela, uma caixinha de fósforo e um suporte. Acendi bem a tempo de ver minha mãe aparecer na porta do meu quarto, também carregando uma vela em um antigo castiçal velho herdado pela minha avó.

— Já deveria estar se arrumando — comentou ao se aproximar e dar um beijo em minha testa. Minha mãe já tinha quarenta e poucos anos, mas não aparentava ter essa idade. Seu rosto parecia dez anos mais novo e os cabelos crespos, ondulados e propositalmente despenteados, não possuíam nenhum fio branco sequer. A pele negra adquiriu uma sedosidade invejável com a luz das velas.

— Faço isso em um minuto. Não demoro para me arrumar — respondi.

— É bom mesmo não demorar. Os novos trabalhadores precisam se apresentar antes do horário de trabalho. Então você tem exatamente quarenta minutos para estar diante de um oficial roxo — sorriu sem vontade. — Não dê margem para lhe fazerem mal. Está me ouvindo?

— Sim, mãe. Não se preocupe. Até parece que a senhora não me conhece.

— Conheço. Bem até demais. Esse é o problema — me deu outro beijo. — Tenha juízo. Agora ande porque o relógio não espera — saiu do meu quarto rapidamente. Ela também precisava se arrumar para sair no horário, afinal, atrasos eram descontados e já não recebíamos muito.

Marcados - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora