Parte V - Dois Dias

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Acordei cedo, levantei com a vontade de estabelecer a paz finalmente entre Lena e eu, se é que isso é possível dada as circunstâncias. Depois da noite passada, não poderia mais discutir com ela, era algo fora de questão. Desci até o andar térreo do prédio pensando no que poderia fazer, andei um pouco em círculos avaliando minhas opções, até que encarei a luz da manhã que adentrava por uma fresta de uma janela. Havia algumas janelas espalhadas pelo andar, a maioria vedada com algumas madeiras que já estavam ficando podres. Escolhi a que ficava mais camuflada entre todas, comecei a puxar as madeiras, os pregos já se encontravam enferrujados e tortos, por isso, não precisei de muito esforço para arrancar as tábuas da posição original, abrindo espaço suficiente para que meu corpo passasse pela abertura.

Pulei para fora, tentando não fazer muito barulho, deparando-me pela primeira vez, em dias, com a cidade. Diferente de quando cheguei, o ar não estava nada fresco, o odor de fumaça pairava no ambiente; tudo parecia cinzento e terrivelmente silencioso, ainda era o fim da madrugada, entretanto, o silêncio era anormal e doentio. Tomei coragem, encarando o interior do prédio que acabara de sair, comecei minha caminhada. Não conhecia quase nada da cidade, estava desacordada quando Lena havia me trazido para cá, todavia, não acredito que seja tão difícil achar algum lugar com alimentos...apesar da situação, que com certeza dificultaria minha procura. Ao dobrar a primeira esquina, pude observar alguns pneus incendiados que não havia apagado seu fogo por completo, marquises destruídas e portas que foram arrancadas de suas localizações originais, observei também algumas pessoas deitadas em certos pontos das calçadas, algumas feridas e com sangue seco, outras apenas adormecidas. Continuei minha caminha, tentando ser a mais silenciosa possível, constantemente olhava para minhas costas, meio receio não era me afastar muito do esconderijo, porém, não sei o que pode acontecer quando os moradores começarem a acordar, contudo, não retornaria sem o que procurava. Passado alguns bons minutos e possivelmente já na divisa para outro bairro, vislumbrei uma fachada pouco destruída, um letreiro pendurado informava que era uma loja de conveniência familiar, sua entrada estava abarrotada de entulhos e destroços, formando uma barricada improvisada, entretanto bem melhor que a do prédio em que estamos escondidas, aproximei-me e comecei a escalar o amontoado.

Pulando para o lado de dentro, quando cheguei ao topo da pilha, a fachada era feita com vidros, que agora apenas podiam ser vistos cacos ainda presos nos painéis dianteiros, peguei um pedaço de madeira que estava repousado próximo e quebrei o resto da vidraça que ainda restava, para poder passar. Ao entrar, constatei que não tinha muitas coisas em estoque, o local era pequeno em seu interior e possuía uma leve aura aconchegante, ainda que muitas prateleiras tivessem sido removidas e utilizadas na linha de frente de defesa. "Não posso demorar...", com esse pensamento, procurei alguma bolsa onde pudesse levar o que eu precisava, uma ecobag cinza pendurada em um gancho perto do caixa, achando-me completamente destoante da situação da cidade devido a minha nova aquisição, parti para as compras. Peguei alguns produtos de higiene pessoal, alguns poucos salgadinhos que encontrei e não estavam completamente esmagados, continuei minha busca seguindo para os fundos do lugar; encontrei um freezer e um armário com leguminosas, que parecia ser mais de uso pessoal do que para vendas, abri um sorriso ao constatar que tudo que precisava, ainda que em pouco quantidade, estava ali. Coloquei tudo na bolsa que trazia em meu ombro esquerdo, voltei para a entrada, não sabia quanto tudo ia dar, então coloquei alguns euros em cima do balcão e sai.

O caminho de volta foi bastante tranquilo, pessoas ainda estavam jogadas pelas ruas, os raios de sol ainda estavam frios e não muito claros. Retornando ao prédio, apoiei novamente as tábuas de madeira em seu local original, não estavam mais presas, todavia, mantinham a ilusão.


— Onde você estava? — Lena perguntou ao me ver adentrar no apartamento. Estava com uma aparência suave e usava óculos, sendo a primeira vez que a vi com eles, arrancando-me um sorriso ao pensar que havia adquirido uma aparência fofa e inteligente.

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