_Estou farta de tudo!_ disse Dóris em voz baixa._ Sentindo-se obrigada a admitir para si mesma que era muito desastrada ao volante. O quê a irritava era a sua péssima coordenação motora: se olhasse para frente esquecia-se completamente dos retrovisores. Às vezes pisava nos freios de uma vez e com uma força desnecessária, deixando um risco preto no asfalto. Outras vezes nem se lembrava de que os freios existissem. Agora, dirigia de um jeito vacilante numa rua íngreme. Na verdade, a subida era pequena, mas soava como um verdadeiro desafio.
Ela notara( embora soasse presunçoso da sua parte) que os instrutores da Auto Escola eram pacientes com ela somente porque era bonita. Mas tudo parava por aí. Por mais que eles apreciassem sua beleza, não foram capazes de fazerem vista grossa para suavizar ou ignorar seus erros. Otávio dizia que ela era um perigo ambulante e Dóris estava a ponto de concordar. Talvez os instrutores ignorassem algumas falhas sutis, quem sabe. Mas ela não era nada sutil ao volante.
O carro ameaçou morrer quando já estava quase chegando ao topo da subida. Ela sentiu medo de o carro voltar de ré rua abaixo, mas se controlou rapidamente e conseguiu executar a manobra de um jeito milagroso. Sorriu com um gosto de vitória. Estou melhorando, pensou satisfeita. Otávio deveria está aqui para ver como ela estava se saindo. Provavelmente ele iria censura-la por ir treinar sozinha. Mas dentro de vinte e quatro horas ela estaria fazendo o exame prático, e as ruas do Esqueleto eram ótimas para praticar.
Vez ou outra as pessoas treinavam ali com seus carros e motos.Ela não encontrou ninguém para ajudá-la. Se bem que achava até melhor treinar sozinha. Otávio, quando podia, gostava de ir com ela para orienta-la. Porém ele sempre se exaltava, deixando-a desesperada e completamente esquecida do que tinha que fazer. Ele se transformava em outro ser: uma versão de um "Otávio" que ela só via no banco do passageiro do seu carro. Era a terceira vez que praticava no Esqueleto sem comunica-lo. Precisava de concentração para treinar. Da última vez em que foi reprovada, ela esquecera do cinto de segurança e, para piorar, avançou com violência no meio fio. Agora já estava na quinta tentativa, e se fosse reprovada novamente iria desistir ao menos por um tempo. Estava esgotada. Aquilo tudo consumia muito as pessoas e, embora percebesse que estava melhor, compreendia que as chances de mais vez ser reprovada eram grandes.
Dóris estacionou o carro diante do meio fio com uma estranha perfeição. Um sorriso descarado apareceu em seus lábios. Era como se todo o medo de errar estivesse se esvaindo de dentro dela. Talvez fosse aquele alívio que, ás vezes dá, quando se parte para o "tudo ou nada". O medo que a atrapalhava, que a deixava insegura e esquecida. Soltou o cinto de segurança e saiu do carro sentindo -se confiante.
Era mês de junho, o vento soprava suave e frio por entre as árvores. Dóris ajeitou uns fios de cabelo por trás da orelha pequena e olhou em volta o local. Tudo parecia mais calmo e tranquilo que das outras vezes em que esteve ali. Olhou com interesse para antiga montadora de bicicletas. Tinha dois andares e ocupava todo um imenso quarteirão. Tudo num cinza quase branco. As paredes cheias de buracos, as janelas, quebradas e, o vidro que restava nelas estava frágil como casca de ovo. Tudo o que sobrou no lugar depois de todos aqueles anos de maus tratos do tempo e das mãos humanos, era somente o esqueleto._Merda, essa náusea de novo!_ Dóris apoiou-se no carro, pálida. Encheu os pulmões o máximo que pôde com o ar frio, mas não estava funcionando. Os solavancos no estômago começaram. Ela sentiu o corpo enfraquecer e agachou-se. Os solavancos aumentaram, e para seu alívio o vômito veio. Vomitou quase todo o almoço. Continuou agachada. Depois de um tempo a náusea desapareceu e a força voltava aos músculos.
Ali, reinava um grande sossego. O som produzido pelo o vento nas mangueiras e nos eucaliptos trazia uma paz solene aos ouvidos de Dóris. Somente nos tempos ativos da montadora é que se via tráfego de caminhões em suas ruas, agora, os automóveis que de vez em quando circulavam por ali eram de aspirantes a motoristas e motociclistas. O Esqueleto fazia vizinhança com o bairro Esplendor que, podia ser visto dali com suas cores vivas. O Esqueleto era solitário, mas de alguma forma emanava imponência. A montadora fora construída numa pequena elevação e seu estranho aspecto altivo dava a impressão de que o Esplendor fazia reverência a ela.
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Cortina de Fumaça
Mistério / SuspenseLeonardo, um homem jovem e deslumbrante, é encontrado morto numa montadora apelidada de "Esqueleto" em Montes Claros, por uma jovem que praticava direção. Enfim, o investigador Jonas se verá livre dos crimes sem imaginação. Ele e sua equipe vão para...