Capítulo 2

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Tudo tinha transcorrido bem na sua agenda matutina. Roberto, suspirou, aliviado. Estava deitado na cama de casal, enfiado num conjunto de moletom cinza. Daniela sempre encaixava os pacientes de forma ordenada. Ela era muito atenta aos detalhes. O paciente chegava na hora marcada e já se encaminhava diretamente ao consultório, sem precisar esperar e, quando era necessário, não durava mais que cinco minutos.

Quase sempre tudo transcorria sem transtornos e esperas prolongadas. Agora já eram três horas da tarde. Depois do almoço ele tomou um banho, e resolveu tentar tirar um cochilo. Tento em vista o que estava por vir, seria bom descançar um pouco. Poderia relaxar uns quarenta minutos, e as dez para as quatro, chamaria um táxi. A pequena mala já estava pronta.

Mudar de vida, pensou com um sorriso. A profissão de dentista não era nada glamorosa. Não entendia porque muita gente relacionava as profissões em que usava roupas brancas com prestígio e prosperidade. Não estava feliz em cuidar dos dentes dos outros. Porque havia escolhido aquela profissão? Tinha tantas outras para escolher e ele escolhera justamente odontologia. Via todo tipo de boca e dentes. Talvez tivesse escolhido essa profissão por causa da fixação que ele tinha por dentes desde que era garoto.

Um dos seus hobbys era observar os dentes das pessoas: o tamanho, a coloração, se os dentes eram perfeitos ou se precisavam de ajustes. Mas até esse hobby não tinha mais graça.

Percebera tarde, que apenas admirava os dentes bonitos. Não tinha vontade nenhuma de tratar dentes podres, amarelos, cheios de buracos. Na fase dos estágios, já se dera conta que não iria obter prazer naquele ofício, porém achou melhor não desistir do meio do caminho. É claro, nem todo paciente possuía um diagnóstico tão asqueroso, ao menos para compensar.

Não era nada agradável lidar com dentes. Era nojento. Às vezes era obrigado a inalar os hálitos horríveis de alguns pacientes que, apesar de suas recomendações, não faziam o uso do fio dental.

Roberto lembrou -se das tantas vezes que suara com o mau cheiro forte que penetrara a máscara cirúrgica. Estremeceu. Não, não estava feliz com a profissão. Fora idiota. Devia ter jogado tudo para o alto e partido para outra coisa. Às vezes pensava em outra profissão, mas já estava com trinta e cinco anos e não tinha mais energia para enfrentar os estudos novamente. De qualquer forma, nessa altura da vida, não adiantava lamentar.

Outro erro foi seu casamento com Daniela. No início tudo ia bem. Na verdade, estava indo bem, mas era somente isso. Tudo no lugarzinho certo. Muito ajustadinho, porém sem sal e sem vida. Ela era atraente, tranquila, agradável. Mas qualidades e defeitos são qualidades e defeitos, não é amor, nem paixão. Daniela trabalhava como sua secretária. Cuidava da sua agenda e das fichas dos pacientes. Era monótôno, mas ela fazia tudo com aparente satisfação. Eles sempre estavam juntos: em casa, no trabalho e, de vez em quando, nos finais de semana, iam a algum lugar. No entanto sempre juntos. Isso faz um casamento adoecer.

Às vezes ele se sentia feliz quando viajava para atender os pacientes da cidade vizinha. Uma ocasião em que podia ficar sozinho, pois Daniela não o acompanhava nessas viagens. Aproveitava esse espaço para respirar, para ficar só consigo mesmo. Devia ser bom para ela também ter um momento só seu. Ela não tinha culpa, mas ainda assim ele tinha vontade de fugir daquilo tudo. Não queria aquela vida mesquinha: infeliz no casamento, na profissão. Sua natureza e seu corpo sentiam falta de algo.

Roberto acreditara que continuaria amando Daniela depois do casamento, e que mesmo quando o amor acabasse eles continuariam juntos até a velhice. Foi um grande engano. Um engano que muitos casais cometiam, conscientes ou não. Mas a vida tinha lhe apresentado uma saída. Ele iria testar tudo com cuidado. Havia preparado tudo direitinho. Precisava de coragem. Não podia ser idiota outra vez.

   _Hoje tá frio!_ disse Daniela entrando no quarto com passos lentos. Sentou- se na cama.

   _Tá mesmo._ disse Roberto em voz baixa.

   Daniela pretendia se deitar ao lado do marido, mas desistiu ao vêlo-lo se virar para o outro lado com indiferença. Durante a noite também era assim, mas ao menos se cobriam com o edredom e dormiam. Durante o dia seria diferente: o conflito entre os dois se intensificaria. Não sabia por que fez aquilo.

   Ficou irritada consigo mesma pela tentativa inútil de aproximação. Ficarem deitados lado a lado durante o dia exigiria mais intimidade, e esse tipo de intimidade não existia mais entre eles. A cumplicidade nunca fora assim tão boa. Nunca um ouviu do outro: " Vou te contar um segredo" ou "precisamos falar sobre nós dois". Havia uma indiferença da parte de ambos em resolver aquela situação de frieza e distanciamento.

   Foi para a sala de estar.

   _Ai, Deus!_ disse ela em voz baixa, queixosa. Deitou-se no sofá grande.

   Há meses ela sofria com o comportamento estranho de Roberto. No início, ela pensou que pudesse ser stress e o cansaço. Ela mesma às vezes se sentia cansada daquela rotina, embora se sentisse bem trabalhando com o marido e sendo útil. Foi quando se preparava para entrar na Universidade que ela o conheceu.

   Apaixonou-se por ele e não teve cabeça para outra coisa. Roberto passara a ser o seu alvo de ambição,e, os estudos para ter uma profissão ficaram em segundo plano. Daniela procurou se apoiar melhor na almofada preta. Agora ele estava deitado, lá no quarto. Ela fora oferecer sua companhia, mas ele a olhou e virou o rosto de uma forma tão brusca... Não era bem vinda.

   No consultório, como vinha acontecendo durante meses, tudo o que o Roberto falou foi relacionado a trabalho. Hoje, porém, ele estava especialmente distante e pensativo. Nem adiantava ela questionar o que se passava. E nem era da sua natureza, questionar. Era uma esposa presente até certo ponto: trabalhavam juntos, cozinhava para ele sem se aborrecer por isso, e estava sempre em alerta para ver se nada faltava. Desempenhava o seu papel de esposa. Talvez a questão fosse justamente passarem tempo juntos demais. Desde o dia do casamento fora assim.

   O quê tinha sentido por ele fora uma dessas paixões deslumbradas que acometia quase todas as pessoas. O casamento foi preciptado: seis meses de namoro. Sua paixão por Roberto tinha durado por mais um ano após o casamento e, depois que o fogo da paixão de ambos se apagou, restou apenas um carinho. Estavam casados há sete anos. Foi o carinho entre eles que sustentou o casamento por mais seis anos. No sétimo ano, apesar da brandura, tudo começou a desmoronar.

   Ao menos para ela, a mudança no comportamento do marido fora brusca. Do nada, ele começou a evitar olhá-la nos olhos. As respostas dele às suas perguntas eram curtas e evasivas. Quando precisavam conversar sobre algum assunto inevitável, ele usava um tom de voz contido, vazio, como se falasse com um estranho num ponto de ônibus.

   Na hora do jantar, sempre arrumava algo para se ocupar, para não se sentar à mesa com ela. Nos últimos meses ela nem o esperava mais para jantar quando ele saía ou se ocupava com algo. No almoço, ele não tinha como fugir de sentar à mesa com ela. O tempo era corrido, mas, isso para ele servia como desculpa para não conversar. No consultório, Roberto ficava mais à vontade. O ambiente na clínica, os pacientes na recepção, o esforço de ambos em fazer um bom trabalho, permitia que, tanto ele quanto ela descançasse um pouco do clima de constrangimento no qual viviam.

   Não se podia negar que mesmo não apreciando a profissão, Roberto era um bom profissional. Seus pais gostaram dele desde o início. Sua mãe repetia incessante: "ele tem uma boa profissão, é jovem e bonito". Verdade. Roberto continuava sendo jovem e de físico interessante. Transpirava masculinidade. Mas o carinho que ele sentia por ela havia desaparecido.

   Agia agora como se sentisse aversão a ela. Evita os toques físicos, como se a pele dela o queimasse.

   Daniela abriu os olhos. Saiu da posição em que estava, e sentou -se. Os cabelos loiros desprenderam do coque e o palito marrom que os prendia caiu no chão. Levantou-se e ajeitou o conjunto de moletom cinza ao corpo. Deitou-se novamente no sofá.

   Acho que vou procurar um advogado, pensou. Vou pedir o divórcio. Ficar casada desse jeito pra quê?
   

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