I. Carna e Jano

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César e Lucrécia Bórgia, irmãos amaldiçoados com um amor incondicional, eram o casal mais polêmico da era renascentista. A história deles não era sobre amor à primeira vista, como com quase todos os casais narrados em histórias. Quando César viu Lucrécia nos braços de seu pai pela primeira vez, a única coisa que ele sentiu foi um ciúme seguido de desprezo. Rodrigo, o patriarca da família, já destinava quase toda a sua atenção para o seu irmão João, e ele acreditava que agora seria ainda mais indiferente para sua família.

Conforme eles cresciam, se tornavam mais unidos, contra todas as probabilidades. Lucrécia gostava de perturbar seu irmão enquanto ele fazia suas lições, mas também adorava inventar novas brincadeiras com ele. César aproveitava para colocar a culpa de vasos quebrados por ele mesmo na casa, enquanto corria pelos corredores, na sua amada irmã, mas também gostava de se sentir útil para ela.

Em algum momento, tal amor evoluiu para condições nunca antes imaginadas. Enquanto Lucrécia adentrava sua maturidade, ela via seu irmão com outros olhos. Ele era seu protetor, seu porto seguro, seu maior confidente, e algo além disso. Era como se um fio invisível e inquebrável os unisse, o que tornava insuportável qualquer separação deles. Ela amava como suas mãos eram macias, como seus abraços eram reconfortantes, e os seus beijos suaves.

Sempre que César a olhava, era como se estivesse vendo uma coisa única, um enigma a decifrar. Ela era sua maior prioridade, a verdadeira dona de seu coração. Mesmo que ele tentasse negar, ele nunca conseguia amar outra mulher do mesmo jeito que ela. Todos os seus outros casos tinham sido paixões, e não tinham a mesma intensidade do que ele sentia por Lucrécia.

No entanto, eles sabiam que nada poderia acontecer entre eles. Irmãos, filhos do Papa, causariam o escândalo do século e fragmentariam sua família. O que restava para ambos era expressar sua devoção um ao outro através de olhares e discretas carícias.

Avancemos para um dia antes do casamento de Lucrécia, onde a sua história de amor realmente começou a se desenvolver. Ambos estavam deitados na mesma cama, ela na vertical e ele na horizontal, perto de seus quadris. O irmão acariciava gentilmente a mão da irmã, a envolvendo como a um pássaro ferido.

— César... posso te fazer um pedido? — ela perguntou, com sua voz angelical.

— Peça e será seu.

— Eu gostaria que você me casasse com Giovanni, amanhã.

Aquele pedido parecia ser mais um castigo do que um privilégio para ele. Sentir que estaria dando sua irmã nas mãos de outro homem, completamente desconhecido, não era bem uma honra para ele. Se qualquer coisa errada acontecesse com ela, César se sentiria culpado pelo resto de sua vida.

— Por favor? — ela perguntou novamente, percebendo que não teria uma resposta tão fácil.

— Isso vai te trazer felicidade?

— Sim. Felicidade e forças.

— Então eu o farei.

Ela se deitou em sua direção e deu um selinho em seus lábios, como fazia às vezes, enquanto os dois estavam fora de vista. Era um beijo inocente, ausente de qualquer conotação romântica. Ele sorriu, tentando demonstrar confiança, mas essa era a última coisa que ele desejava fazer no momento.

— Você sabe que se eu pudesse, eu evitaria à todas as custas que você se casasse com um desconhecido. — ele disse.

— Eu me casarei de bom grado, pela família, por papai. Talvez eu consiga sentir afeto por ele, algum dia.

— Eu preciso me recolher, mana. Tenha bons sonhos.

Ele beijou gentilmente a testa de sua irmã, e seguiu para seus aposentos. Deitado, ele não conseguia sentir sono algum. Giovanni não tinha herdado a polidez de sua família, pelo que ouvia, e ele via a sua irmã tão inocente quanto uma rosa que cresce entre espinhos.

No dia seguinte, eles não se encontraram até a tarde. Durante a cerimônia, Lucrécia se mostrou tão exuberante quanto uma rainha. Sua beleza parecia poder cegar quem não estivesse preparado. Nenhuma ninfa dos quadros de Botticelli ou princesa de toda a Europa conseguia chegar aos pés dela, naquele vestido champanhe adornado com pérolas.

Cada palavra que saía da boca de César, enquanto cardinal que liderava a cerimônia, parecia uma linha a mais na sentença de morte de sua irmã. Enquanto ela e o noivo beijaram-se na sua frente, era como se o mundo desabasse. Ele sentia algo pior que um veneno, que corroía todos os seus órgãos por dentro. Desde o momento que ele tinha aceitado conduzir a cerimônia, ele sabia o quanto isso despedaçaria seu coração. Mesmo assim ele fazia isso, só para ver o sorriso no rosto de sua pequena Lucrécia, não importando o quanto doesse.

Com o fim da cerimônia, ele se ausentou de suas vestes cerimoniais e buscou sua mãe, afrontando a ordem de que ela ficasse longe da festa, dada por seu pai. Lucrécia mal conseguia conter sua felicidade ao vê-los, estando extasiada pelo que o seu irmão tinha conseguido fazer por ela. Ao seu lado, no entanto, seu noivo desaprovava totalmente a situação. Achava-a animada demais, quando a vida era feita de decepções para ele. Conseguiria consertá-la assim que estivessem a sós, pensava.

Quem chegasse apenas para a festa, com certeza achava que os dois irmãos eram os recém-casados. O jeito que eles sorriam e se olhavam enquanto dançavam era encantador, mas não típico de irmãos. Os convidados pensavam que ambos sussurravam coisas indecentes, um ao pé do ouvido do outro, mas apenas fofocavam suas primeiras impressões sobre o noivo. A aparência otimista de ambos, entretanto, escondia o que realmente passava em suas mentes: a incerteza, a saudade que já se formava, a sensação de que essa seria a última dança de ambos, e que portanto, deveriam aproveitar cada segundo.

Eles trocaram olhares que nunca seriam esquecidos, e se separaram apenas quando foram implicitamente obrigados. A garota assistiu à um teatro obsceno e grotesco ao lado de seu marido, que ria de forma escandalosa. Ela recolheu-se em seu quarto, sozinha, apreciando o que pensava ser sua última noite com uma cama exclusiva para si. Enquanto pensava no seu irmão, que se encontrava com outra mulher que tentava satisfazer seu apetite carnal, adormeceu.

Pela manhã, pediu que suas criadas arrumassem sua bagagem com o que achassem necessário, e ausentou-se para procurar pelo seu irmão. Ele andava ao lado de outra mulher, no jardim. Seu coração apertou-se um pouco vendo a cena, por pensar que ela poderia ser substituída em breve. Ela andava se escondendo atrás das pilastras do pátio, tentando não ser percebida.

César dispensou a mulher com quem tinha passado a noite, e dirigiu-se exatamente na direção em que sua irmã estava, sentindo sua presença.

— Você deveria estar montando a sua mala.

— Eu precisava te ver uma última vez, longe de todos.

— Está com medo?

— Eu devo encarar meu dever com coragem.

No fundo, ela tinha certo receio sobre seu marido. O jeito que ele evitava suas perguntas e ria de coisas tão baixas não haviam a convencido de que ele era um bom homem. No entanto, ela tentava permanecer forte.

— Se um dia ele te desrespeitar... eu prometo que arrancarei seu coração ainda vivo.

Ela corou com a promessa de seu irmão, encontrando certo conforto no ato violento.

— Mas eu espero que você e seu marido se amem de todo o coração. Que você tenha a vida mais feliz que possa imaginar.

— Isso seria impossível. Você sabe que meu coração pertence à você, e a mais ninguém. Eu jamais conseguiria abrir espaço para qualquer outra pessoa.

— Somos irmãos, Lucrécia. Jamais poderíamos terminar juntos.

Ele beijou a testa de sua amada, como se desse uma benção. Ela segurou o rosto de seu amado entre suas duas mãos, dizendo "adeus, meu amor". Ele a viu andar para longe, sentindo o maior bem de sua vida escorrer como areia entre seus dedos. Nada poderia o consolar por aquela perda.

Por uma janela, ele a assistiu partir com seu marido. Seu pai colocou a mão em seu ombro, assistindo a cena ao seu lado. O jovem se recusou a ficar mais tempo naquela sala, e recolheu-se em seus aposentos.

Tragédia romanaOnde histórias criam vida. Descubra agora