V. Píramo e Tisbe

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César acordou, ainda abraçado à sua irmã. A noite passada tinha sido um delírio ou um acontecimento verdadeiro? O nó mal feito da camisola de Lucrécia denunciava que sim, tinha acontecido, e o sol forte o revelava que tinha passado muito mais tempo dormindo do que deveria.

Ninguém a protegeria tão bem quanto ele. Ninguém a compreendia tão bem quanto ele. Mas moralmente, o que eles tinham continuava sendo errado. Não importava o quão juntos eles realmente estivessem, como na noite anterior, sempre parecia haver uma barreira entre eles. A garota se mexeu nos braços do irmão e ele atacou seu pescoço com beijos, fazendo-a rir.

— Pare, você sabe que eu tenho cócegas aqui! — ela dizia, entre gargalhadas.

— Ontem à noite você não tinha.

— Tudo estava diferente ontem à noite. — Lucrécia respondeu, virando-se para o irmão. — Eu nunca dormi tão bem desde que voltei para cá. Obrigada.

César brincou com os cachos de seu cabelo e beijou seus lábios delicadamente. Ver seu sorriso e sentir o gosto doce de sua irmã eram as únicas coisas que conseguiam afastar as indecisões de sua cabeça.

— Eu preciso sair agora. Tenho que resolver algumas coisas para nosso pai.

Lucrécia se indagava mentalmente quando iriam parar de viver por seus pais, e sim por si mesmos, mas se levantou também e até o ajudou a colocar sua jaqueta.

— Por quanto tempo você vai ficar fora?

— Devo voltar à noite. Quando escurecer, pode me deixar o portão dos jardins aberto? Podemos deitar no chão e assistir as estrelas, se você quiser.

— Eu adoraria.

Ambos deram as mãos e as alisaram. César seguiu seu caminho e Lucrécia retornou ao seu quarto, para trocar de roupa e começar oficialmente seu dia. Escolheu brincos minimalistas, guardados na caixa que antes carregou o coração de seu ex-marido. Passou o dia bordando e lendo, e no fim da tarde, pretendia fazer companhia ao seu pai. Colada à porta de sua sala, ouviu uma gritaria de vozes conhecidas, que traziam a notícia mais inoportuna possível.

— Como assim você vai entregá-la nas mãos de um desconhecido qualquer de novo? A garota voltou espancada e você já quer a enviar embora de novo! — Vanozza, sua mãe, gritou.

— Precisamos de canhões para a guerra contra os franceses, você tem alguma ideia melhor? Não? Eu já imaginava. — seu pai replicou, ainda mais alto.

— Você não pode entregar nossa filha como um bezerro de ouro novamente!

— Eu já encontrei um pretendente muito bem apropriado e conveniente. Devem se conhecer em poucos dias.

— César nunca vai te perdoar por isso.

— Ele não precisa. É pelo bem da família.

Com o coração batendo a mil, Lucrécia correu para longe daquele lugar, como se fosse uma criança amedrontada fugindo de alguém. Todo dia alguém tentava fazê-la viver por outras pessoas, e isso a sufocava. Sua única esperança era seu irmão. Ele poderia enviá-la para algum convento distante, pensar em outra estratégia ou até mesmo, fugir com ela. A vida de cardinal não o apetecia mais há muito tempo. Poderiam se mudar para uma vila pequena, usar nomes falsos e levarem uma vida simples, mas livre.

A poucos passos de sua irmã, em uma rua deserta, César ouviu passos juntos de si. Quando parou, eles aceleraram, e foi o sinal que precisava para ficar alerta. Certo medo corria por suas veias, lembrando-se das últimas palavras de Giovanni. Não tinha medo de Catarina Sforza, e sim de até quando ela iria caçá-lo, como a tigresa que se considerava. Sua irmã também estaria em jogo, afinal. Tal guerra entre as duas famílias poderia durar anos.

Virando-se rapidamente, encontrou um soldado correndo em sua direção, e sacou sua espada em combate. O oponente fez o mesmo, iniciando uma batalha acirrada contra o jovem cardinal. O som agudo e metálico das espadas parecia quase deixá-los surdos. O assassino de aluguel foi desarmado, ferido gravemente pela espada, e atingiu o chão. Sem tempo para respirar, César se virou novamente, sentindo outra pessoa se aproximar. O novo conflito se desenrolou por um tempo considerável, com o novo oponente se demonstrando muito mais ágil que anterior. Terminou sendo atravessado pela espada.

Enquanto guardava sua espada, o cardinal sentiu uma dor aguda nas costas e uma falta de ar. Era como se alguma coisa também o tivesse atravessado. Em seguida, ouviu o barulho de algo tilintando no chão. Encontrou uma adaga ensanguentada. Sentiu um líquido quente escorrer pelo seu corpo. Ao se virar, encontrou seu primeiro oponente ajoelhado, e desfalecendo em seguida. Reconhecendo a gravidade do seu ferimento, juntou suas forças e pôs-se a sair daquele lugar.

Lucrécia. Lucrécia. Lucrécia. Essas eram as únicas coisas em que ele conseguia pensar. Prensando o ferimento com sua mão, ele cambaleava até os portões dos fundos de sua casa, onde poderia entrar diretamente no jardim. Sua visão embaçava. Ao longe, conseguiu perceber a silhueta de sua irmã, que veio correndo em sua direção, gritando o seu nome.

— O que aconteceu, César? — ele ouviu, em ecos. A voz era desesperada, misturada com um choro alto.

— Eu não consigo... só fique comigo.

Enquanto falava, gotas de sangue voavam de sua boca. Nem com um médico à pronta espera conseguiriam salvá-lo, no estado em que estava. Na noite anterior, ele estava decidido que estipularia uma distância entre ele e sua irmã, mas percebeu naquele momento que isso era impossível. O amor que ambos sentiam era incondicional, e tentar ignorá-lo apenas machucaria os dois eternamente. Poder partir enquanto nos braços de Lucrécia era o seu último pedido, a última coisa que o fazia resistir à dor imensurável e alongar suas últimas respirações. Aquela apunhalada era a coisa menos dolorosa para si. O pior era imaginar como sua irmã seguiria, sem que ele pudesse protege-la ou alegra-la. Ele não sabia o quão importante realmente era para ela, mas sabia que seria uma perda devastadora para ela. Mil e uma coisas queriam sair de sua boca ao mesmo tempo. Desejava dizer que ela precisava ser forte, que encontraria alguém que a amaria do jeito que é, que continuaria com ela nos momentos mais difíceis. As forças, no entanto, faltavam.

Com muito esforço, e vendo o mundo se alternar entre um grande borrão e uma escuridão total, conseguiu escorregar o anel que tinha ganho quando se tornara cardinal para o anelar de sua irmã. Era a única coisa material que estava com ele, independente de onde fosse, e o tempo inteiro. Não era como uma aliança de casamento, mas ele esperava que Lucrécia a interpretasse como a maior entrega que ele poderia fazer. Tinha trocado a sua perspectiva cristã de vida eterna por mais dias com sua amada, e faria tudo novamente se tivesse outra chance. O anel que nunca deixava ninguém tocar, agora estava nas mãos da pessoa mais importante do mundo para ele.

Entre lágrimas e a sensação de fim de mundo, a irmã se inclinou e o beijou pela última vez, com todo o seu amor e devoção. Não o deixaria partir sem que o lembrasse por uma última vez, que era apenas sua.

— Durma bem, meu amor. — ela disse, sentindo o sofrimento nas últimas expiradas de seu irmão.

Seus olhos se fecharam, e sua cabeça tombou para o lado. Lucrécia chorou como se todos os seus órgãos estivessem sendo arrancados à força, porque era essa a sensação. O seu grande motivo de viver tinha partido. A única pessoa que conseguia trazer cor para seus dias mais nublados. Era como se metade de seu coração, subitamente, tivesse parado de funcionar. Ela não conseguiria continuar naquele mundo, não sem ele. Em breve, seria prometida à outro homem, poderia sofrer as mesmas coisas, e não haveria ninguém para resgatá-la. Entre morrer nas mãos do mundo ou nas próprias, ela escolheu a segunda opção.

Num ataque de adrenalina, pegou o punhal ensanguentado do cinto de seu irmão e desferiu um golpe mortal em si mesma, caindo ao seu lado. Sentiu o sangue quente jorrar para fora de seu corpo, criando uma grande mancha na grama. Olhou pela última vez em direção ao seu amado, e sorriu. Finalmente poderiam ficar juntos. Independente de qual fosse seu último destino, nem a morte iria separá-los.

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