Se não fosse pelas grandes manchas de sangue pintando a grama, aquilo pareceria mais a cena de um casal dormindo, longe do olhar de todos. Lucrécia tinha o olhar virado para o seu irmão, e mantinha sua mão, que continha o anel cardinalício, acima de seu coração. César tinha o rosto virado para sua irmã, de olhos fechados. Se não fosse uma cena tão trágica, poderia se tornar uma tela, ou talvez até uma escultura.
Assistindo aquilo, uma lágrima escapou do meu olho esquerdo. Depois outra, e mais outra. Meu choro tornou-se alto, trazendo a atenção do meu marido, que descansava perto de uma lareira.- Ocupada bisbilhotando a vida dos humanos, Juno? - ele perguntou.
- Eu os assisto desde que eram crianças. São importantes para mim.
- Eles não são poetas. Não são heróis. Não nos adoram. Não temos motivo para trazê-los para cá.
- Eles são heróis, para mim. São o maior poema que o mundo já viu. São o maior tributo que qualquer pessoa poderia ter feito.
- O que eles fizeram, além de serem devotos um ao outro? Me diga, estou curioso.
- Há milênios o amor não flui nessa casa. - disse, caminhando em passos pesados até ele. - Eu sei de cada amante que você teve, e eu ainda continuo ao seu dispor, dividindo o posto de "Governante dos Deuses" com você. Se deseja provar que me amou pelo menos uma vez, só deixe que venham para cá. Você nunca mais olhou para o mundo dos mortais, é claro que não vai entender.
Ele não me respondeu, e permanecia petrificado, encarando as chamas da lareira.
- Eles foram assim como nós, algum dia. Irmãos. Amantes. Eu sei que não me ama mais, mas de uma coisa eu tenho certeza: eles ficariam juntos pela eternidade, se pudessem. Se amariam até mesmo durante o inverno da imortalidade. Você não precisa inundar uma ilha por mim ou pintar outra amoreira de rosa, só permita que eles continuem juntos.
- Saiba que meu amor por ti não está morto, Juno. Está desgastado, mas ainda existe. É como uma chama debaixo da chuva que se enfraquece, mas não se apaga. O amor dos Deuses é o mais confuso que existe.
O abracei por trás, enquanto digeria suas palavras. Criaturas como nós tinham uma eternidade para entender o que era o amor, mas mesmo assim ele se demonstrava cada vez mais confuso. Milênios se passavam e ainda nos machucávamos com as mesmas coisas idiotas. Admirávamos como os mortais conseguiam compreendê-lo e vivê-lo, às vezes em trinta, às vezes em oitenta míseros anos.
- Eles estão nos portões. Vá e receba-os.
- Obrigada. - disse, beijando sua cabeça.
Naquele dia, eu os recebi e mostrei todos os prazeres que seu novo lar poderia oferecer. As frutas de todas as árvores eram doces, os rios e cachoeiras eram cristalinos e puros, o ouro e os diamante existiam em abundância. Durante as noites, caía uma chuva leve, que servia para refrescar e regar as plantações. As flores cresciam em todos os lugares, por vezes formando canteiros coloridos. Os mais belos animais viviam em harmonia dentro das florestas, e não existiam pragas. As pessoas podiam dançar e se divertir de noite e de dia, sem precisarem se preocupar com dogmas desnecessários. Grandes fogueiras eram erguidas constantemente e as pessoas cantavam, assavam comidas e contavam histórias ao redor delas.
Deixei os dois sozinhos para explorarem seu novo paraíso por si próprios, maravilhados com tudo o que tinha lhes mostrado até então. Era comum vê-los correndo pelas florestas, explorando grutas, banhando-se em rios, beijando-se debaixo de árvores ou se amando sob o céu estrelado. O casamento dos dois, para mim, foi a cerimônia do milênio, tão grande quanto a união de dois heróis. Rosas vermelhas enfeitavam o altar, e ambos vestiam seus trajes clássicos. O brilho em seus olhos era tão intenso quanto estrelas cadentes, e seu beijo, tão impactante quanto um eclipse. Uma chuva de plumas caiu sobre os dois, eternizando aquele momento.
Eles tiveram filhos, também. A ideia de ter filhos naquele lugar não fazia sentido para ambos, de início. Encaravam como a vida após a morte, onde claramente estavam mortos, sendo impossível gerar uma vida. Entretanto, nós Deuses, conseguíamos compreender que a alma era imortal, e que ela conseguia criar o que quisesse. Mesmo assim, a descoberta os agradou muito. Vendo seu primeiro filho, César faltou apenas se derreter. Segurou aquela coisa pequena embrulhada em panos em seus braços, e ao ver seu rosto, se emocionou. Todas as vezes que sentia seu polegar sendo segurado por aquelas mãos pequenas, sentia que seu coração explodiria de tanto amor.
Aquela era a vida com que Lucrécia sonhara secretamente desde que passou a entender o mundo: eles poderiam viver por si mesmos, fazerem coisas de casais normais, e terem uma nova experiência a cada dia. Vê-los correndo e se abraçando ao pôr do sol, se beijando debaixo de treliças ou ajudando seus filhos pequenos a colherem maçãs era algo normal.
Cada dia novo era tão novo e feliz quanto o anterior. E assim, eles continuaram juntos em seu destino final, entre os Deuses, por toda a eternidade que se pode imaginar.
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Tragédia romana
Narrativa StoricaLucrécia e César Bórgia são o clássico casal de mitos greco-romanos, que têm um amor proibido que causa inveja até aos Deuses. César quer proteger a sua jovem irmã do mundo inteiro, e sente que nunca conseguiria se afastar dela. Lucrécia se sente se...