Dois de junho.
Eu fugi! No sentido literal da palavra. Arrumei uma mochila e fui visitar meus pais na noite seguinte em que tudo aconteceu sem avisar a ninguém, nem mesmo o celular levei comigo, porque a fuga não era suficiente, eu também precisava desaparecer. Confesso que só estava voltando por causa da apresentação final, apresentação essa que confesso ter pensado em faltar, o que me custaria um sermão da Madame Charlie e pelo menos mais seis meses de aulas, mas após pensar muito e colocar as ideias em ordem, percebi que nenhum homem vale mais que o meu sonho de me formar na academia. Agora, com a cabeça encostada na janela eu observava o caminho percorrido pelo ônibus de volta para casa e um nó se apertava na minha garganta à medida que chegava cada vez mais perto do meu destino. A viagem havia sido proveitosa, meu pai ficou tão eufórico com minha presença que só queria saber de me carregar de um lado para o outro na pequena cidade exibindo para seus amigos a "filha que se tornaria dançarina", já minha mãe, sempre desconfiada, me encheu de perguntas e não sossegou enquanto não contei tudo a ela.
Flashback
Anahí: Não aconteceu nada mamãe. – Respondi pela milésima vez desde que havia chegado o que fazia apenas duas horas.
Marta: Você tem certeza filha? Estou te achando um pouco abatida! E você nunca falta o trabalho! – Insistiu.
Anahí: Tenho. - Falei com a esperança de ela parar com o interrogatório.
Marta: A sua apresentação é daqui a alguns dias, duvido que fosse parar de ensaiar só para ver a mim e a seu pai.
Anahí: Senti saudades, só isso. – Disse dando de ombros, mas seus olhos focaram os meus e pude perceber que ela não havia acreditado em uma só palavra. Minha mãe era assim, parecia que via através de mim e não adiantava tentar enganá-la já que ela sempre descobria a verdade. Sem aguentar mais, soltei um suspiro e me sentei na cama do meu antigo quarto que ocupava todas as vezes que ia visitá-los.
Marta: Confie em mim. – Ela pediu se sentando ao meu lado e eu apenas a abracei deixando algumas lágrimas teimosas escorrerem pelo rosto. Contei toda a história para ela que ouvia com atenção e sem me interromper uma única vez – Você avisou para alguém que vinha para cá? – Quis saber depois que terminei de falar.
Anahí: Não.
Marta: Maite deve estar preocupada, talvez até esse tal de Alfonso esteja. – Me censurou e eu a olhei incrédula, então ela logo desviou o rumo da conversa - Bom, você quer a minha opinião?
Anahí: É claro que sim! – Respondi com um meio sorriso – Sua opinião vale mais que a de qualquer outra pessoa.
Marta: Você foi muito precipitada minha filha, mas eu não a culpo, é igualzinha ao seu pai. – Ela disse acariciando meus cabelos e eu sorri novamente, dessa vez com mais vontade – Deveria ter falado com ele antes de qualquer coisa, mesmo que tivesse de procurá-lo. Quem sabe tudo não passou apenas de um mal-entendido?
Anahí: Não acho que tenha sido um mal-entendido. – Teimei - Ele foi embora e pronto. As coisas sempre foram assim para Alfonso.
Marta: Mas você mesmo disse que ele havia mudado.
Anahí: Na verdade agora acho que toda a mudança não passou de uma ilusão criada na minha cabeça.
Depois disso ela não me perguntou mais sobre o assunto, mas a preocupação comigo era visível. Por isso procurei passar o máximo de tempo possível com meu pai. Maite telefonou algumas vezes a minha procura, mas eu sempre estava na rua e quando voltava não queria retornar as ligações.
Agora o momento inevitável em que o meu reencontro com Alfonso aconteceria estava cada vez mais próximo e eu não podia fazer nada quanto a isso.
Quatro de junho.
Uma onda de nervosismo tomou conta de mim, faltavam menos de vinte minutos para anunciarem a minha entrada junto de Alfonso no palco e ele não havia sequer aparecido. Respirei fundo e fitei meu reflexo no espelho tentando parecer segura enquanto ajeitava alguns grampos em meus cabelos. Chegava a ser irônico o meu desespero por causa de sua ausência já que tudo que queria era nunca mais vê-lo em minha frente. Rita, a moça que trabalhava nos bastidores veio me avisar que eu entraria em dez minutos e para minha surpresa Alfonso surgiu junto dela. O alívio foi apenas momentâneo, pois o nervosismo voltou assim que ouvi o som de sua voz.
Alfonso: Achei que não fosse voltar nunca mais. – Disse enquanto trocava de roupa rapidamente sem se importar com a minha presença.
Anahí: Bem que você queria. – Respondi casualmente, tentando parecer inabalável com o reencontro.
Alfonso: Eu Anahí? Você some e... – Tentou mais eu o interrompi.
Anahí: Apenas se arrume, já estamos em cima da hora! – Falei me levantando e o deixando sem chance de resposta.
"Calma, essa será a última vez que você irá vê-lo."
Eu repetia isso em minha mente como um mantra enquanto caminhava para o palco. No caminho esbarrei em Maite.
Maite: Louca! Como você viaja daquele jeito? – Ela parecia indignada.
Anahí: Eu precisei visitar os meus pais. Eles tiveram um probleminha por lá e...
Maite: A sua mãe já me contou tudo. – Disse me cortando. Esse era o maior problema da Dona Marta, não cabia com a língua dentro da boca. – E nem adianta reclamar! Eu que tinha que estar furiosa com o fato da minha melhor amiga não confiar em mim.
Anahí: Não faz drama. – Pedi cansada, só me faltava Maite querer discutir comigo agora.
Maite: Ok. – Respondeu de cara fechada – Mas só porque não vai dar tempo de eu te dizer tudo o que tenho para dizer.
Anahí: Em relação a que?
Maite: Ao Alfonso é claro!
Anahí: Não há mais nada a ser dito sobre esse assunto.
Maite: Tem sim, e você vai me ouvir de qualquer jeito!
Eu ia responder, mas fui impedida por Madame Charlie que apareceu procurando por mim para que me posicionasse ao lado de Alfonso. Fui até o lugar indicado e ele me pegou pela cintura assim que as primeiras teclas do piano começaram a soar. Fechei os olhos tentando controlar o desejo que se manifestava por tê-lo tão perto de mim, então as cortinas se abriram e pude sentir centenas de olhares atentos sobre nós dois.
A música tomou conta de tudo e os passos começaram a se manifestar quase que por instinto, eu não pensava em mais nada, apenas me deixava ser guiada por ele. Meu corpo estremecia a cada contato direto com o de Alfonso, mas, apesar de tudo eu nunca havia me sentido tão segura, seu perfume suave fazia com que eu me concentrasse apenas em nós dois, dançávamos no ritmo certo e a sintonia era perfeita. Permiti-me esquecer de todos os problemas naquele momento e entreguei minha alma por inteiro à apresentação.
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Doce Encanto
Romance"O ódio nunca nasce da indiferença, e esse sentimento pode ter origem no medo de perder o outro, receio de ser rejeitado ou até mesmo ser uma reação desencadeada por uma admiração profunda." Anahí e Alfonso estudavam juntos há anos na academia Silho...