Acontecia todos os anos, quase como um ritual. A família que sempre escolhia a casa mais velha da cidade se mudava para outra casa mais velha ainda, em outra cidade. Era exaustivo, todos eles achavam, mas era assim que conseguiam dinheiro para sobreviver. Não eram pobres nem nada do tipo, eles só gostavam de coisas velhas.
Há mais de quatro gerações a família Morgan começou um pequeno negócio de restauração de antiguidades após se mudarem para uma casa de dois séculos e encontrarem vários itens valiosos enterrados na propriedade, o que acabou se tornando uma tradição para todos os que viriam a fazer parte daquela descendência.
Os anos foram se passando e o negócio da família foi lucrando cada vez menos, pois as pessoas não tinham mais tanto interesse em antiguidades quanto tinham pela tecnologia que a cada dia crescia e criava lucros estratosféricos mundialmente. Mas ainda assim a família Morgan continuava com o seu negócio, mesmo mal tendo dinheiro para trocar de carro.
O motor da Kombi 1996 roncou ao ser acionado e uma nuvem densa de fumaça escura saiu do escapamento.
- Não faça isso comigo, não hoje, por favor! - implorou Gael à Kombi baixinho.
- Está falando com o carro de novo, amor? - perguntou Alice ao marido sentando-se ao lado dele e batendo a porta do passageiro mais forte que o necessário.
- Não... é que... eu, eerrr... - enrolou-se tentando omitir o óbvio.
- Sim, você estava - insistiu Alice, rindo. - Não se preocupe, essa Kombi vai viver mais do que nós três juntos, não é mesmo, Eric?!
Eric saindo de seus devaneios, olhando para a casa em que morou durante o último ano, balbuciou um "aham" desanimado e sussurrou para si mesmo:
- Vou sentir saudades.
- Nós todos vamos, meu filho. Esta definitivamente foi uma das melhores casas em que moramos depois de muitos anos.
- Verdade - concordou Gael.
Eric era o único filho do casal Morgan, tinha apenas 17 anos e já trabalhava com os pais restaurando os itens das casas em que moravam. Móveis antigos, paredes ou cômodos inteiros, ele sabia de como cuidar, ou pelo menos tentava. Mas a sua especialidade mesmo era a restauração de livros. Desde muito pequeno gostara de sumir entre as páginas dos livros das fartas bibliotecas que haviam nas casas em que morara, cada uma maior que a outra. Como a especialidade de seu pai era tratar dos móveis e a de sua mãe eram os papeis de parede, era destino dele cuidar dos livros desgastados pelo tempo e pela poeira. Aos sete anos de idade restaurara seu primeiro livro, Moby Dick. Seus pais ficaram tão orgulhosos pelo seu trabalho que deram de presente ao garoto 10 livros novinhos sobre aventureiros que desbravaram o mundo, incluindo um exemplar do livro que Eric havia restaurado; Gael até chorou, e com certeza não foi por causa da poeira da roupa do garoto que entrara em seus olhos.
A tradição de restauração de coisas antigas realmente havia de algum jeito se infiltrado no DNA da família, e todos eram muito felizes com o que faziam. Ao pé da letra, haviam nascido para isto. Mesmo com as crises financeiras a família sempre soube se manter e o dinheiro que conseguiam com os trabalhos, depositavam em uma conta bancária e esqueciam que existia. E ano após ano, casa após casa, eles iam vivendo a vida, restaurando as coisas que o tempo já não se importava mais em levar consigo.
A Kombi roncou mais uma vez quando Gael pisou no acelerador e cantou sua costumeira canção da estrada que só a família Morgan parecia conhecer.
Eric, olhando pela janela, observou as tonalidades em que o mundo se encontrava. Amarelo, laranja e vermelho estavam por toda a parte. As copas das árvores que beiravam as estradas já não estavam mais tão fartas. O asfalto era um tapete de tons quentes e o som de coisas secas sendo esmagadas se juntava à canção da Kombi numa só sinfonia naquele final de tarde.
Era outono. A época em que as folhas caem.
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O PAPEL DE PAREDE
FantasyUma casa antiga. Um quarto com um papel de parede sombrio. Uma magia desconhecida. Um garoto curioso. Um mundo perdido entre a fantasia e a realidade.