Capítulo 4

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Olá meus amores, tão na paz?

Eu não, mas isso não importa.

Leiam aí essa bagaça, se quiserem.

☢︎︎

Aquele foi o último dia de aula, e passamos as férias todas aqui. Isso é mais ou menos o que eu tenho feito:

1) Dormido - como já disse.

2) Tentado ver Camila de novo. Eu a vi várias vezes. Conversar, nem pensar.

3) Tentado conhecer Grace. A Grace enigmática. A Grace sabe-tudo. Ela me encara, mas não diz muita coisa.

4) Ouvindo a parte da minha mãe na conversa quando ela fala com meu pai sobre mim e minha irmã ao telefone.

5) Ficando preocupada com eles e com a escola nova. E tentando não pensar mais nisso…

6) Seguido os caras do Patrimônio Histórico enquanto eles catalogam os itens da casa.

Dava para ver que o homem dos móveis, Bryce, ficara irritado, mas Posy, a moça dos vidros e porcelanas, era legal. No final, a compaixão dela se tornou pior que a irritação dele. Ela me perguntava quais eram meus planos para aquele dia enquanto checava tudo a fundo e tomava notas como "par de pratos do primeiro período Worcester". Nós dois ficávamos sem graça quando a resposta era sempre "não muita coisa", ou seja, nada.

Em algum momento da segunda semana, quando o comentário sobre como era uma pena não ser verão ou a gente não poder ir nadar na piscina comunitária em Gibson Park  já encheram o saco, ela disse:

-- Entrar para um clube pode ser uma boa maneira de conhecer pessoas, Laur. O que você gosta de fazer?

- De ler. Na maior parte do tempo.

Eu só queria que ela se sentisse melhor..

- Tem xadrez também. Mas eu não gosto de gente que gosta de xadrez. Pelo menos, não das pessoas que eu conheci…

No último dia de trabalho dela, quando cada item da casa já fora catalogado, etiquetado, codificado e segurado, ela mencionou um telefone tipo CVV para jovens, como quem não quer nada.

- Não existe problema no mundo que não possa ser resolvido ao discutir o assunto. Na sua idade, às vezes as coisas parecem piores do que realmente são.

Suspirei.

- A situação não está muito boa, mas também não sou suicida. E eu tenho duas amigas.

A minha amiga, Vero, está passando as férias na casa da mãe. Ela está morando por seis meses em Londres, em Chelsea, estudando sobre lingerie do período georgiano na National Art Library. É uma tese, e não um fetiche.

Pelo restante dos seis meses, Vero, irá morar com seu pai e madrasta, a famosa Plano B.

Uma das únicas duas coisas boas sobre a gente ter se mudado para cá é que agora moro mais perto da casa de Vero, o que será ótimo quando ela voltar.

Dinah, minha outra amiga, também mora perto, mais perto que Vero até. Ela mora com sua mãe num pequeno apartamento aqui perto, seu pai morreu quando ela era pequena. Nossas mães são amigas desde a faculdade, nascemos com alguns meses de diferença.

– Além disso — eu disse, esperando deixar Posy mais tranquila —, quem cuidaria de Grace se eu cortasse os pulsos?

Eu era o novo vale-refeição de Grace, e ela não tirava o olho de mim. Ela sempre me olhava ao ouvir seu nome, com um olho só e uma orelha só em pé, e, mesmo em seu estado preferido de semiconsciência, sabia exatamente o que estava acontecendo.

Ah, e por falar nisso, essa casa fede por causa do cheiro de xixi de cachorro. A casa está encharcada, marinada em urina, de parede a parede. Estamos tentando dar um jeito nisso, mas, se você acha que desodorizante em spray misturado com o aroma de tapete mijado ajuda a melhorar o fedor original, você tem sorte de nunca ter sido obrigado a escolher entre os dois.

Grace é parcialmente responsável, porém não é culpa dela. Ela deve ter passado um tempão presa em casa. Quando Josephine morreu, ela já estava usando um penico à noite. O que é justo, afinal seria uma caminhada e tanto até o banheiro para uma senhorinha
de 90 anos. E ela também tinha uns gatos. Pelo jeito, a turma toda tratava a casa como uma privada gigante. Os gatos foram embora.

Tudo precisa ser limpo com vapor. Minha mãe está brigando com o Patrimônio Histórico para resolver quem deveria pagar por isso.

-Um dia tudo ficará para eles mesmo, então por que ninguém coloca a mão no bolso para pagar essa porcaria de manutenção?

- Por nenhuma porcaria de razão aparente — respondi. Morro de rir quando ela tenta xingar com um jeitinho educado de mãe.

Ela sorriu com a minha surpresa.

- Ando nervosa demais.

- Jura?

Aquilo animou minha mãe um pouco. Algumas pessoas não acham que sarcasmo é engraçado, mas nós, sim, na nossa familia. Ou nossa família recém-encolhida. Nossa família-agora-com-um-quinto-a-menos.

Se você está pensando em como a minha mãe está lidando com esse negócio de marido gay, ela parece estar mais ou menos bem com a situação. Mas não dá para saber de verdade. Sempre quando eu pergunto como é que ela está se sentindo, ela responde na lata, mas muda de assunto. "Desprezada, mas forte", ela diz, ou "com raiva, mas bola pra frente", ou "magoada, mas
não estou a fim de vingança".

Pelo menos não a escuto chorar à noite.

Não somos homofóbicas, aliás eu sou lésbica, o problema é o cara que se dizia meu pai nos abandonar sem mais nem menos, nos falir e fazer nós morarmos nessa casa que fede a xixi de cachorro e gato. Só porque é gay.

Nunca ouvi um pio também da casa ao lado, apesar de colar minha orelha em qualquer parte disponível da parede antes de lembrar que a tinta é provavelmente original e à base de chumbo, ou seja, tóxica. Acho que acabei de adicionar uma morte lenta à minha lista de preocupações de médio prazo.

O único barulho que ouço é de alguma coisa arranhando e caindo lá no sótão, às vezes.

Já investiguei esses barulhos e acabei encontrando umas coisas bem inesperadas lá em cima. Quando achei o que achei, tive de fazer uma escolha. Acho que fiz a escolha errada. Duas vezes. E ainda estou tentando descobrir por que que fiz.

Falei sobre isso com Grace. Bem que eu queria saber o que ela achou. Se eu tentasse adivinhar, diria que ela não curtiu muito. Mas é difícil dizer. Ainda estou no nível iniciante de "cachorrês", apesar de ela ser fluente em "humanês". E não estou falando só de inglês. Ela consegue ler pensamentos. É muito irritante.

Minha mãe até me ajuda quando o assunto são questões morais, mas ela anda meio distraída ultimamente, lidando com a separação e tentando montar seu próprio negócio, Rolou mais uma batalha com o Patrimônio Histórico. Ela teve de dar uma arrumada na cozinha mandou instalar umas prateleiras, fogão industrial e uma geladeira.

– E espero que os bichinhos tenham ido embora de vez — disse ela. — Aconteça o que acontecer, nunca conte nada disso aos clientes, Laur.

– Até eu sei que ratos não são os sócios dos sonhos numa confeitaria - respondi, levemente ofendida.

- Nem diga essa palavra! Ainda estou traumatizada!

Ela começará a fazer bolos de casamento. Acho que ninguém que acabou de sair de um casamento pensaria justamente nisso, porém nesta casa, além de sarcasmo, também há ironia.

Impossible ThingsOnde histórias criam vida. Descubra agora