Capítulo I - Lágrimas embotadas.

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Ela olhava intensamente pela janela abobadada, em um olhar perdido nas profundezas de sua mente não percebendo a fina garoa que caia do céu fechado, e que atingia seus braços desnudos e a luva em suas mãos. Sua pele arrepiada, se contraia em contato com as gotículas frias, forçando-a cada vez mais para dentro de si mesma e cada vez mais para longe de seu quarto.

Elizabeth não compreendia o exato motivo de sua melancolia, nem de onde vinha a pequena lágrima que passou a descer pelo seu rosto mas logo a secou. Ela teve poucas oportunidades como essa para pensar sobre o rumo que sua vida tomava em meio ao caos da Segunda Guerra Mundial.

Graças aos preços exorbitantes no mercado, sua família não conseguiu se manter firme e a escassez havia se tornado tão comum que o pouco se tornara luxo, e muitos roubavam uns dos outros para tentar sobreviver. A cidade enlouquecia, as crianças andavam sujas pelas ruas, usando suas roupas rasgadas implorando por um bocado de pão para quem passava, apenas para receber a resposta de que a crise afetou a todos.

Ninguém conseguia fugir das consequências da guerra, e o assunto das conversações era rotineiramente a política, e um ênfase cansado era dado, logo após falarem 'o que será de nós?'. A resposta era clara, ninguém sabia. Os planejamentos e os palpites se tornavam vãos, como correr atrás do vento, já que no próprio presente não tinham certeza se escapariam dos bombardeios massivos que aconteciam em Londres. Tão frequente se tornou a perda de familiares que não se via mais os enlutados em lágrimas, apenas carregavam aquele mesmo olhar vazio, oco, estampado em suas faces. Como se a própria morte deixasse sua marca sobre os rostos das vítimas que optava por assassinar lentamente.

Elizabeth se lembrava do passado, quando brincava em frente a sua casa com os poucos amigos que tinha, quando a sua peculiaridade ainda não havia se mostrado. Naquela época, ela não sabia quão grande era o espaço que o vazio podia ocupar em um coração quebrantado.

Após a morte de seu pai, tudo piorou, sua mãe, Margaret, não conseguia mais sustentá-las, visto que agora estava sozinha, e dependia sempre de seu tio Ferdnand quando a situação se apertava demais. Sua mãe agora só andava aflita de um lado para o outro, e seus sorrisos não eram mais como antes, havia sempre um vislumbre de preocupação escondido em seus olhos.

Elizabeth olhou para baixo distraída para as luvas de couro molhadas em suas mãos. Os detalhes bem trabalhados formavam pequenos pardais voando em meio ao vento. Seus dedos traçando os desenhos. Liberdade.

Sua mãe a deu de presente estas luvas quando ela completou 13 anos de idade, pelo seu poder ter despertado.

"Isso não é algo que você deva temer, Elizabeth" sua mãe lhe dissera, depois de haver dado a sua filha "Você nasceu única, assim como seu pai". E enquanto acariciava as mãos da menina, acrescentou em um sussurro "Você nasceu peculiar, se orgulhe disso."

Depois disso aquelas luvas se tornaram quase que parte de Elizabeth, e nem se tentasse não conseguiria mais viver sem elas. Eram a única coisa que impedia a sua peculiaridade de ser descoberta. Eram a sua única proteção contra os olhares maldosos e os sussurros dos vizinhos, quando os braços de sua mãe não se encontravam como escudo ao redor dela.

Ouviu duas batidas na porta do quarto e seu nome sendo chamado, e percebendo que era sua mãe, rapidamente se afastou da janela, a fechando e sentou-se em sua cama. E logo a mulher abriu a porta, parecendo pronta para falar sobre algo importante, até que olhou confusa para o vestido e os braços molhados da menina, já com 15 anos de idade, até que soltou um longo suspiro.

"Elizabeth, quantas vezes tenho que repetir que não é para você deixar a janela aberta? Está muito frio, você vai acabar doente desse jeito!" Disse pegando um pedaço de pano e esfregando contra os braços de sua filha, que arrependida pediu desculpas para a mãe.

"Não se esqueça de ir trocar de pijama e coloque esse para secar" segurou o pano nas mãos depois de terminar. Olhou para Elizabeth numa mistura de hesitação e cansaço. Logo desistiu de ficar de pé e sentou-se tensa na cama, ao lado da menina, colocando mechas do cabelo, que ia apenas até os ombros, atrás da orelha.

Elizabeth percebendo a tensão que se instaurou no ambiente, movia as mãos nervosamente sobre o colo. Ela irá falar novamente sobre o orfanato, pensou.

"Você está ansiosa?" perguntou, vendo as mãos da menina. Ao que Elizabeth respondeu com um aceno leve. "Não fique."

"Você sabe que é para o seu bem que eu faço isso, filha" pegou com cuidado as mãos da menina, retirando as luvas, e segurando-as nuas sobre seu próprio colo.

"Eu entendo, mãe" sussurrou Elizabeth, sentindo as carícias em sua mão. Ela amava sua mãe, mais do que tudo.

"Lá vai ser um bom lugar para você, ninguém irá te machucar" Margaret disse dando um sorriso pequeno "Tem crianças por lá, tão peculiares quanto você. Eu conheço a diretora, ela é uma boa mulher e não deixará que nada falte para você" Era quase possível ouvir seu coração se quebrando a cada palavra que saía de seus lábios, percebeu a menina.

Por mais que a ideia de deixar a sua casa e sua mãe para trás, Elizabeth compreendia os motivos que rondavam o coração de sua mãe. Margaret não queria que sua filha vivesse em meio à guerra, e muito menos que ela fosse julgada pela sua peculiaridade. Os residentes do bairro já suspeitavam que havia algo de estranho na menina e se descobrissem sem dúvida explorariam Elizabeth, ou fariam algo pior ainda.

Margaret sabia disso. E não deixaria sua filha exposta a tantos perigos assim.

"Ela é uma boa mulher, ela cuidará de você..." repetiu o que tantas vezes já falara à Elizabeth, tentando deixá-la melhor, e levantou limpando o vestido florido com as mãos "Já está na hora de ir dormir, amanhã acordaremos cedo, não se esqueça de retirar este pijama molhado" a mulher se agachou, olhando nos olhos da menina novamente e deu um beijo em sua testa. "Boa noite, Elizabeth."

Caminhou até a porta e a fechou atrás de si, já podendo sentir o nó se formando na garganta e as lágrimas amargas que não tinha coragem de soltar em frente à sua filha. É para o bem dela, repetia, é tudo para o bem dela, eu não posso perdê-la também.

Elizabeth ainda no quarto olhou para a janela, a garoa havia se tornado em uma chuva torrencial. Enquanto escutava o som da chuva sobre o telhado, ela se permitiu chorar. Lágrimas escorriam pelos seus olhos, sentindo que o céu acompanhava a sua lamentação.

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Corações Peculiares |  MPHFPCOnde histórias criam vida. Descubra agora