Quatro dias antes

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Um pouco depois das dez da noite, como sempre, troquei de turno com Mabel. Eu costumava ignorar tudo e apenas me jogar na cama, mas desta vez estava mais disposta para enfrentar um banho. O que me levou a deitar lá pela meia-noite.

Confortável e quentinha, fechei os olhos agarrada ao meu travesseiro, imersa em um aroma de romã e canela do meu sabonete. Eu estava pronta para ser entregue ao mundo dos sonhos quando barulhos de chaves me fizeram gritar.

— Puta merda mulher! — Bravejou, uma voz conhecida. Um pouco da luz que vinha do poste da rua iluminou sua expressão de espanto.

— Gustavo Capões!

— Fala baixo... está tarde! — Ele resmungou, olhando para o teto. Fiz o mesmo com uma careta — por um segundo —, até me lembrar quais eram os moradores daquele prédio. Minhas vizinhas da terceira idade, provavelmente já estavam desmaiadas há horas.

— Eu poderia muito bem jogar esse abajur na sua cara! Como você entra assim do nada! O que está fazendo aqui?

Gustavo me encarou como se tivesse se esquecido do porque de estar ali, ou pelo que bem o conhecia, estava envergonhado, pois seus olhos pairam sobre qualquer lugar, menos nos meus.

— Tenho a chave de emergência... — Ele sussurrou em meio ao escuro, como se eu lembrasse. — Eu não tinha permissão?

Parei para pensar um pouco, atordoada pelo susto e o sono, mas acabei assentindo me dando conta do que estava acontecendo.

— A partir de hoje não mais. Vem logo, antes que eu mude de ideia...

Voltando minha cabeça para o travesseiro escorreguei o corpo para o extremo direito da cama, bem longe do corpo comprido de Gustavo. Fiquei encarando a porta. O silêncio e toda a tensão presente no quarto estavam me perturbando, na verdade, estavam corroendo minha alma. Eu sabia o porquê dele está ali, e me deixava triste saber que eu era a única que podia ajudá-lo.

— Chegou a dormir? — Perguntei baixinho, temendo que ele pudesse ter caído no sono. Tudo que eu menos queria era assustá-lo em seu sono.

Ouvi o farfalhar dos lençóis. Senti que era a deixa para virar-me. Levei as mãos abaixo do travesseiro me mantendo confortável e longe o suficiente do calor de Gustavo.

— Quase isso... Desculpa aparecer assim do nada, mas eu tinha que vir. Eu precisava...

— Tudo bem. Fico aliviada que veio... Não gosto de pensar em você sozinho com esses pensamentos... — Ergui o olhar para encará-lo, sua feição parecia tranquila e zombeteira. — Foi o mesmo pesadelo? — Perguntei receosa.

— O caminhão... você gritando...

Assenti com cautela, sentindo meu estômago afundar. Eu não queria chorar, odiava quando me sentia vulnerável, mas eu odiava que Gustavo tivesse pesadelos tão perturbadores comigo, por um trauma causado pela morte do irmão.

— Ei, está tudo bem... — Ele murmurou se aproximando, mas parou bruscamente. Abri os olhos, e tudo que eles transmitiam eram: saudade.

— Pausa? — Gustavo perguntou.

— Pausa.

Deslizei o corpo, quebrando o espaço entre nós. Quando encostei a cabeça no peito de Gustavo, eu sabia que era patética nossa briga, mas precisávamos desse tempo.

Ainda mais, precisávamos ter certeza.

As manhãs sempre pareciam passar voando, ou talvez eu fosse devagar demais ao inverno

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As manhãs sempre pareciam passar voando, ou talvez eu fosse devagar demais ao inverno. Eu não saberia dizer, mas ainda sim. A vida não para mesmo quando sua vontade é de ficar debaixo das cobertas com chá quente e um livro bem clichê.

Olhei para a pista e atravessei correndo com uma garoa afrontando sobre minha cabeça, que em instantes se tornou uma chuva forte contra minha capa de chuva amarelo gema. Minhas botas também tiveram consequências: se tornaram facilmente um depósito d'água.

— Até que enfim! Minha hora de almoço termina em meia hora — Tony reclamou e me ajudou com a capa, me dando um beijo gentil no topo da cabeça.

Mais cedo ele havia mandado um Bom dia e seu usual pedido: "Almoça comigo gata?"

— Desculpa, a madrugada foi agitada... Acordei mais tarde que o normal.

— Vocês transaram! — Ele gritou, ou quase isso. Todos do restaurante nos encararam. Sorri para disfarçar, mas minha vontade era de chutar meu amigo.

— Você poderia ser menos homem? – Perguntei entredentres, sentindo minha alma aquecer de vergonha.

— Não tem como gata. Meu saco não deixa — Ele deu de ombros com uma piscadela atrevida. Revirei os olhos.

Eu gostaria de ter sabido em que momento acreditei que ser amiga de homem seria mais legal. Porque sinceramente, dei um grande azar de ter encontrado um que só me perturbava a existência com suas tiradas sem noção.

— Não, não transamos. Você sabe que não é assim que as coisas funcionam. Não conosco.

— De você não tenho dúvida, já ele... — Ele cantarolou, e deu uma mordina na sua pizza marguerita. — Pensado bem, você transformou o cara em um pau-mandado então, não importa o que você diga Gustavo ainda vai babar no seu pé.

Fiz uma careta. Não era bem isso que eu queria: um cachorro babão. Gustavo era autentico e bem resolvido, ele não perderia o tempo dele com alguém que não está interessado. O que levava ao nosso caso... Ele sabia bem que eu estava interessada.

— Eu só quero que ele fique bem! Não quero que Gustavo olhe para mim e lembre o acidente, isso não é justo com ele...

— Olha, eu sei tá. Posso provocar um pouco porque sei o quanto vocês se fazem bem, mas tem dado certo, Tina — Tony falou baixo, mexendo seu café recém entregue por um garçom. — Ontem foi à primeira vez em duas semanas. Todo dia ele me manda um print do relatório da terapeuta. Ela está feliz com os avanços.

— Duas semanas... Os pesadelos podem ir embora?

— Tudo indica que sim — Ele confirmou. Seus olhos azuis, invejais, sorriram para mim. — Seu homem está avançando, e você continua sem uma resposta.

— Quê? Como assim sem resposta?

— Faltam quatro dias Tina! Esqueceu?

— Putz! — Levei à mão a testa. — Eu realmente não me lembrei.

— Qual é Tina, que memória ruim é essa? — Ele reclamou rindo e olhou no relógio. — Merda, falta dois minutos. Nos vemos gata! Não se esquece de dar sua resposta. Faltam só quatro dias! Não faça nosso garoto esperar!

O feriado da desilusão (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora