Aquela era uma madrugada sem nuvens ou estrelas. Mesmo que fosse muito tarde e o relógio de cabeceira marcasse duas da manhã, Ravena estava acordada. Claro, ficar desperta em horários inoportunos nunca foi um hábito saudável, contudo, não tinha escolha. Há muito ansiava por uma noite tranquila, sem sonhos. O problema é que nunca dormia mais que duas horas, já que, ao fechar os olhos, revivia cada mísero momento em que esteve sob a influência de Trigon. Entre passar por tal tormento e ficar acordada, a segunda opção sempre soou melhor a ela.
Não havia muito o que fazer nessas horas além de vagar feito uma alma condenada pelos corredores do prédio. Felizmente, a Torre estava sempre silenciosa em momentos como esse, já que todos dormiam, o que era bem conveniente. Evitava questionamentos ou comentários desnecessários. A questão é que, com o passar dos dias, até a quietude torna-se entediante, mesmo para alguém como Ravena. Foi por isso que começou a matar as horas ociosas da madrugada no terraço. Subia sorrateiramente com sua xícara contendo chá fumegante, e se sentava no chão em posição de lótus para apreciar a vista da baía. Gostava de observar a escuridão do céu vibrar aos poucos, com os variados tons de azul e laranja, até que os primeiros raios de sol surgissem.
Acontece que, um dia, Garfield teve a mesma ideia. Ela não fez objeções quando ele apareceu, nem quando se sentou ao seu lado, sorrindo, com o rosto amassado e os olhos rodeados por olheiras.
Estava com uma cara péssima.
— Noite ruim? — ele perguntou.
— Mais ou menos isso. E você?
Observou-o dar de ombros.
— É... — coçou a nuca, mas nada disse. Ela não exigiu qualquer detalhe. Nunca foi mexeriqueira.
Quietos, apreciaram a vista até os primeiros indícios do amanhecer. Depois voltaram em silencio para seus quartos, cada um seguindo seu caminho, sem olhar para trás.
Surpreendentemente, ele apareceu na madrugada seguinte. E na outra.
E também na outra.
Com o passar dos dias, uma rotina surgiu sem que os dois percebessem. Mutano passou a levar cobertores para mantê-los aquecidos e Ravena agora se dava o trabalho de preparar duas xícaras de chá. Juntos, passavam as noites admirando as estrelas, conversando até o nascer do sol.
Um relacionamento improvável aflorou.
Duas pessoas incrivelmente diferentes, porém, igualmente problemáticas, unidas por um vínculo difícil de ser explicado. Odiavam-se ao mesmo tempo em que eram amigos. Nada tinham em comum e, apesar disso, conheciam-se melhor do que imaginavam. Mesmo que não conversassem sobre trivialidades como suas cores favoritas ou o que mais gostavam, aprenderam bastante sobre o outro na adolescência, ainda que tenham passado a maior parte dela brigando e discutindo.
Mutano, porém, agora era um adulto. Ela ainda não tinha notado isso porque é o que acontece quando se convive com alguém desde a infância. Você não repara nesses pequenos detalhes. A convivência te cega, de alguma forma. Mas ela reparou mesmo assim. Ele, que antes era o mais baixo da equipe, estava uns trinta centímetros mais alto que ela. Ainda era irritante. Inconveniente. Cheio de gracinhas. Mas havia um brilho maduro nos olhos verdes. Algo que a deixava sem fôlego. Mais do que isso, Garfield aprendeu a manter um bom diálogo – não como antes, aquelas conversas sem sentido que a irritavam. Os dois agora conversavam de verdade. Sobre coisas profundas.
Sobre o que os incomodava.
— Não sei qual é o problema comigo. — ele desabafou, certa vez, a fumaça subindo fraquinha do chá de ervas. — Não gosto mais dela, — embora nomes não fossem mencionados, não era necessário ser muito inteligente para saber que falava de Terra, a ex-membro da equipe. Mais do que isso, a ex-namorada dele. — mas esses dias a vi, lá naquela loja de discos velhos que fica no centro. Ela está diferente. Adulta. Agora tem um filho. Seguiu em frente, está vivendo a vida... E ainda não lembra que fiz parte dela. — apertou os lábios. A sombra de compreensão a cobriu. — Desde então, não consigo pregar os olhos. Não durmo há dias. Não porque gosto dela, mas porque, vê-la lá, com um filho, casada, me fez questionar o que eu estou fazendo com a minha vida, entende?
Ravena ficou um tempo em silencio, com a borda da xícara nos lábios, admirando o horizonte. Esticou a mão e apertou o ombro dele, em um gesto de solidariedade.
— Entendo. — respondeu, por fim, entre um sussurro. — Entendo perfeitamente.
Por mais que não fosse boa com as palavras, havia sinceridade na voz.
Isso foi o suficiente para ele.
+
Era difícil saber quando as coisas entre os dois mudaram.
Um dia ele apenas ficou ciente da presença dela. Rae parecia preencher tudo quando chegava, com seus sorrisos misteriosos e olhos brilhantes. Era contida, metódica, sempre certa nos pensamentos, escolhas e decisões. Ela franzia as sobrancelhas antes de rir, como se fosse errado, e tinha sardas fofas, quase imperceptíveis, no nariz pálido. Era estranho reparar nessas coisas. Esses detalhes de repente estavam lá, pairando em seus pensamentos. Havia dentro dele uma admiração contida não só das qualidades dela, mas de todos os defeitos.
Ravena tinha uma essência linda. Mais do que isso, ela era linda.
De corpo, alma e coração.
Entenda, não era para ter acontecido.
Mas aconteceu.
Os momentos triviais que passavam no terraço tornaram-se eufóricos, com uma tensão eletrizante no ar. Corações palpitantes, mãos suadas. Era tudo muito estranho para os dois, aquele sentimento, aquela coisa nova dentro deles. Os olhares seguidos de sorrisos tímidos ocorriam com uma frequência desconcertante, fosse no terraço, fosse nos corredores ou até mesmo sentados à mesa, durante as refeições.
Então, em uma dessas madrugadas – uma que era para ser como qualquer outra –, sentados juntos, aproximaram-se com a justificativa de que seria mais fácil ouvir o que o outro tinha a dizer caso estivessem mais próximos.
Nada, porém, servia como desculpa para os eventuais toques ou as pernas encostando. Muito menos quando Mutano empurrou uma mecha de cabelo violeta para trás da orelha dela, ouvindo-a atentamente, como ninguém nunca fez.
Ela não hesitou. Não o afastou.
Seria estranho, Rae pensou, explicar para si mesma como se deixou levar.
— Acho que isso é uma péssima ideia. — disse, em meio a um sussurro, a respiração deles mesclando.
— Também acho. — sussurrou de volta.
Mas nenhum dos dois se afastou.
Não houve surpresas, nem foi de repente.
Ela sabia o que ele ia fazer quando inclinou a cabeça em sua direção, os olhos verdes quase fechados, os dedos quentes segurando seu pulso com firmeza, como se temesse que ela saísse correndo.
Mas Ravena não correu.
Apenas permitiu-se sentir. O coração acelerado, as mãos suando, aquela sensação incômoda no estômago. Sensações que nunca teve em seus poucos vinte anos de vida.
E esperou, com os olhos fechados.
Esperou pelo inevitável.
E o inevitável aconteceu, quando os lábios encostaram sem cerimônia, quentes, suaves. A maciez, a umidade. Garfield não sabia o quanto desejou isso até, finalmente, fazê-lo. Já Ravena não sabia o que pensar, estava atordoada. Não conseguia se importar com nada que não fosse a boca contra a sua. Ela o agarrou pela nuca, puxando suavemente os fios verdes com a ponta dos dedos. O rapaz apertava a cintura fina, puxando-a para perto, colando seus corpos o máximo que conseguiu.
Foi o primeiro beijo deles.
O primeiro de muitos que viriam.
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Primeiro amor
Fiksi PenggemarEles eram almas conectadas, entrelaçadas, descobrindo o primeiro amor. [BBRae! | Coletânea de contos]