Sexta Noite - Pequeno Surto

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Às vezes você já teve aquela sensação de dormir sem saber se acordaria no dia seguinte? Um medo latente, que lhe arrepia a pele e tira o sono, aguardando por um monstro que nunca vem. Augusto viu um monstro em ação e temeu pela própria vida no tempo que sucedeu a situação de risco de vida. Talvez ele tenha visto coisas que não deveria e, ao se olhar no espelho - ou no retrovisor do carro - enxergava um alvo redondo, bem colorido, em sua testa. Mais uma noite em Niterói e as incertezas do taxista só aumentavam.

Dia e noite ele rodou pela cidade, transportando pessoas de todas as idades para todos os cantos, esperando o contato de Ricardo. A cada sinal vermelho uma olhada no visor do aparelho celular. Alguns passageiros se incomodavam e pensavam no quão melhor teria sido pegar outro carro.

- Ei, amigo! - começou o passageiro - Tá tudo bem?

- Hã?! Está, está sim. - respondeu Augusto.

O taxista apresentava sinais visíveis de cansaço, o horário beirava meia-noite e as pistas estavam consideravelmente vazias. Seu passageiro, notando isso, começou a temer por si. Parecia bem apessoado e poderia dar conta de pedir outro táxi.

- Cara, acho que vou ficar aqui. - disse o passageiro.

- Pera, pera! Tá muito longe do seu destino. - disse Augusto.

- Tu não tá legal, amigo. Olha, ainda tem uma galera na rua, posso descer aqui mesmo e tentar arranjar outro.

- Não se incomode! Tô nessa há muitos anos e sei quando parar... Posso continuar assim a noite toda.

O passageiro o olhou com extrema desconfiança.

- Não é isso que tá parecendo. Olha, eu vou sair tá... - disse ele.

- Não vai, não.

Augusto acionou a trava das portas do carro. Seu companheiro de viagem bem que tentou abrir e forçar a saída, mas sem sucesso.

- Rapaz, eu estou te dizendo que o levarei ao m-... Ao teu destino! Se tô dizendo, tá dito e ponto final! - exclamou Augusto Seixas.

- Você tá doido, camarada?! Me sequestrando pra me levar até em casa??? Isso se a gente chegar lá...

O companheiro tornou a mexer repetidamente no trinco e tentar forçar a porta para fora, mas nada dela ceder. Precisaria de muito empenho para danificar o mecanismo, mas àquela hora do dia estava prestes a pender para o lado de tanto cansaço.

- Abre essa porta ou eu vou tentar sair pela janela!

- Amigo, não faz isso! Vou te entregar em casa são e salvo.

- Tu é maluco e tá tentando me sequestrar.

Quando o rapaz abriu a janela e balbuciou um movimento pela abertura, o sinal ficou verde e Augusto arrancou o veículo com tudo. O solavanco deu um susto no passageiro e o fez se recostar na marra e todo desengonçado. A respiração dele começou a pesar e, associando isso ao já citado cansaço, o coração disparou e quase lhe perdia pela boca. Não tinha mais como fugir.

- Você não vai desistir, vai? - indagou o passageiro, quase em súplica.

- Não! Essa é a única coisa que sei fazer bem e eu não vou deixar que você me dê essa desfeita hoje, aqui, agora. Pode nunca mais entrar no meu carro, mas não vai dizer que não fiz o serviço! - respondeu Augusto, dando sinais de lucidez na voz e no olhar fixo no trânsito.

As luzes dos postes da rua passavam rapidamente por eles. O interior do carro, apagado, aceitava a mudança constante da claridade vinda de fora. Aquela percepção de deslocamento rápido incitava algum nível de náusea no passageiro.

- Pelamor de Deus, eu vou vomitar! Pare esse carro, por favor! - exclamou ele.

- Não vai fugir?! - indagou Augusto.

- Eu não tô em condições de... - ele interrompeu sua fala pois se sentia prestes a regurgitar.

O taxista, sem opção, destravou a porta e reduziu a velocidade do carro rapidamente (exatamente nessa ordem). Se o colega não estivesse com o cinto de segurança, provavelmente teria voado com a cabeça no vidro dianteiro. O movimento brusco do veículo, no entanto, fez o cinto pressionar sua barriga com força num curto período de tempo e quase expelir o conteúdo envolto em sulco gástrico ali mesmo.

Forte, o rapaz resistiu ao solavanco, aos segundos da parada do veículo e percebeu Augusto destravando seu cinto antes mesmo dele se voltar ao mecanismo. Num breve instante, o passageiro abriu a porta e saltou veículo a fora. Pôs-se de joelhos e colocou tudo pra fora quase no limite da calçada, diante da praia de São Francisco.

- Eita, lasqueira! Frouxo, frouxo... - disse Augusto a si mesmo, assistindo à cena vergonhosa com certo desprazer.

Ao tentar se levantar, o jovem não resistiu e expeliu ainda mais restos do último lanche ou jantar. Observando aquela cena, Augusto percebeu que não iria embora dali tão cedo com ele e também saiu do carro. Decidido, o taxista se aproximou para averiguar a situação do rapaz.

- Ô rapaz, o que houve? - indagou.

- Tá tudo bem. - começou o rapaz com dificuldade, tentando se recompor - Bebi um pouco, talvez demais, antes de entrar no seu carro. Tava tentando impressionar umas garotas...

- Fala sério que precisa disso?! Ah, cara... O tempo passa e esse povo jovem só piora.

- Pode me chamar de Maique. E sim, só piora... Mas e você, me sequestrando pra levar em casa?! Nunca vi disso.

Maique estava arqueado para frente, com suas mãos nos joelhos. Porém, desistiu de manter a posição e se afastou um pouco da região com o vômito. Sentou-se no limite da calçada para a praia, com os pés sobre a areia. Augusto o seguiu e sentou ao seu lado.

- Augusto, me chamo Augusto. - começou o taxista - Como disse, essa é a única coisa que sei fazer bem: dirigir meu táxi. Não ia te deixar por aí.

- Não precisava desse escarcéu todo... - retrucou.

Enquanto Maique limpava ao redor da boca com manga curta da camisa, Augusto se deixou levar um pouco pelo assunto inicial. Olhando para o céu estrelado e uma lua pomposa, lhe preencheram as boas lembranças da juventude. Os amigos, os casos e as situações nas quais ele foi parecido com seu passageiro frustrado. "Fui feliz naquela época", pensou.

- Ei! Tá no mundo da lua?! - disse Maique.

- Opa! O que você disse? - indagou Augusto, desatento.

- Deixa pra lá, já respondeu...

- Me avisa quando passar o enjoo que a gente retoma a viagem.

Maique lançou-lhe um olhar desconfiado.

- Vai me "sequestrar" novamente? - indagou ele, indicando as aspas com as mãos.

- Não, só vou te deixar em casa seguro. Nada de corrida maluca essa noite.

Enquanto conversavam, o celular de Augusto tocava no carro. Devido ao volume baixo e as portas fechadas, o toque do aparelho era inaudível. Os dois continuaram na praia conversando por um bom tempo e, enquanto isso, a insatisfação de um terceiro agente só tornou a crescer.



Luzes da CidadeWhere stories live. Discover now