No céu niteroiense, onde a lua era um mero borrão entre as nuvens, havia uma ameaça de chuva não cumprida. Em frente à estação das barcas, Augusto e outros dois taxistas aguardavam algum passageiro que não pensasse em pedir um Uber. Escorado na porta dianteira de seu sedan de quatro portas, Augusto tinha o cantil aberto em suas mãos, hoje apenas com água.
Olhou brevemente para o táxi que estava logo atrás e viu que David, o próximo motorista, estava com um cãozinho que mexe a cabeça perto do para-brisa dianteiro. Era bem a cara dele:
- Gostou dele, rapá?! - disse David - Meu amigão, Jhony! Concorda com tudo que eu falo.
- Parece você com sua mulher. - respondeu Augusto, rindo.
- Olha rapá... Olha lá... Cê começa essas brincadeiras assim, depois não sabe porque eu tô pistola!
Uma senhora bem graciosa, vinda de uma leva recém-saída da barca que acabara de atracar, se aproximou e solicitou uma corrida. Cordial, Augusto a ajudou a entrar pela porta de trás e, só depois, foi para o banco do motorista. No carro de trás, David apenas observou em silêncio.
- Para onde, senhora? – indagou Augusto.
- Região Oceânica! – respondeu.
Indicando-lhe para colocar o cinto de segurança, Augusto percebeu o toque de lentidão nas ações de sua passageira, provavelmente resultado das limitações de sua capacidade motora. Após o procedimento, ele deu a partida e, gentilmente, manobrou com o carro para entrar na larga pista - procurou evitar qualquer solavanco. O baixo tráfego do dia colaborava e muito para um trajeto tranquilo. O carro de trás, por sua vez, assumiu o lugar como o próximo na fila.
- Pode ir por Icaraí, meu filho. – disse a senhora – Eu gosto da vista.
- Tem certeza? - indagou Augusto.
- Toda! - respondeu animadamente.
- Então vamos nós. Quer o rádio ligado?
- Não precisa, meu filho! Está muito bem assim.
Com toda tranquilidade do mundo, Augusto dirigiu rumo a Icaraí, porém buscando contornar a praia desde o início, passando em frente à entrada da Ilha de Boa Viagem e o Museu de Arte Contemporânea – aquele mesmo com formato de disco voador.
Na rua, conforme o carro avançava, a iluminação forte e alaranjada, próxima a praia, dava à travessia um gosto particular.
- Motorista, qual o seu nome? – indagou a senhora.
- É Augusto.
- Então, seu Augusto, já estou com meus setenta e todos e esse lugar ainda me alegra cada vez que passo. – disse a senhora, rindo.
- Essas luzes mexem um pouco comigo. – disse Augusto, com um pouco de desconforto.
- Nós somos as luzes, seu Augusto! As pessoas são as luzes dessa cidade. Nós que damos vida a essa cidade, nós que a damos luz.
Pela cara de Augusto ao escutar o comentário da senhora, ele meio discordava um pouco dessa afirmação. Enquanto isso, a ameaça celeste se cumpre e começa a chover.
- Uns mais que outros, certo? – indagou o taxista.
- Sim, claro! – respondeu a senhora, serenamente – Mas todos temos luz, sabe? Se a gente não escondesse a luz que tem ou tentasse apagar a luz dos outros, teríamos uma vida bem melhor.
A única coisa que passou em sua cabeça ao ouvir a resposta foi "É, talvez ela esteja certa", e nada mais. A alegria infantil de sua passageira tinha alguma coisa poderosa, alguma coisa contagiante. Começou a ficar pensativo.
- Acha que falei algo errado? – indagou a senhora.
- Não, não... Estou pensando qual foi a luz mais brilhante que já vi nessa cidade, ou que tenha andado aqui hoje.
A expressão no rosto da senhora mudou para um tom preocupado.
- Dia difícil? – indagou a senhora, num sereno tom de preocupação.
- Vida difícil, senhora... Vida difícil.
O celular de Augusto toca baixinho: uma mensagem.
Pelo resto da viagem, os dois se mantêm em silêncio. Por um lado, a senhora não queria cutucar alguma ferida ainda aberta do taxista; por outro, o Augusto não queria tirar da senhora o pleno aproveitamento de um dos prazeres que ela mais tinha na vida.
A parte seguinte dos acontecimentos é meio turva, mas Augusto se lembra dos pingos de luz do túnel Charitas-Cafubá ficando para trás, de ter deixado a senhora em casa, recebido pela corrida e retornado ao centro. Estava ansioso para ver a mensagem que recebera, embora não tivesse muita esperança de ser algo diferente de uma sugestão de promoção da operadora telefônica.
Quando leu o conteúdo da mensagem, imediatamente franziu o cenho.
"Boa noite, Augusto! É o Ricardo, do casal da noite anterior. Tenho um serviço pra amanhã. Topa?"
Não cheirava bem o imediatismo com o qual o homem lhe chamara. Era cedo, cedo até demais. Augusto sabia que precisava de dinheiro e ocupar a cabeça. Para tal, ter um cliente fixo ajudaria. Porém, Ricardo não especificou o serviço. Afinal, ir ou não ir?
Um relâmpago cortou o céu, numa trajetória impensável para o rompimento da escuridão. Após isso, a hesitação do taxista, devido às suas incertezas, se metamorfoseou em curiosidade. No fim, ele respondeu positivamente à proposta.
"Boa noite, Ricardo! Confirmo o serviço. Me manda a hora e o local."
Noutros tempos, não aceitaria uma oferta tão simples e repentina. Não sabe quem é seu contratante, nem no que está se metendo. Pensa que "o que vier é lucro", tendo em mente que qualquer coisa bizarra que ocorrer será uma penitência justa. Seu comportamento o direciona a um abismo de incertezas das mais variadas, mas já há um tempo que não enxerga seu futuro.
O que ele vê, para frente, é vazio.
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Luzes da Cidade
Fiksi UmumHistória focada em noites diversas da vida de Augusto Seixas, um taxista niteroiense. Ele nada mais é que um humano como todos nós, com sua história e experiências únicas. Seus segredos, guardados a sete chaves, talvez falem melhor que ele quando a...