Um dia após falar com o investigador, Augusto dirigiu pelas ruas de Niterói e algumas do centro do Rio em mais um dia. Dessa vez, poucos passageiros e viagens mais longas. Teve o azar de transportar uma família cuja criança enjoou na ponte e tratou de vomitar no estofado do banco traseiro durante a tarde. Os pais, um tanto sem graça, fizeram questão de pagar um bônus pelo ônus. Augusto queria era pegar o bônus e enfiar num ânus.
Em qualquer dia aquela graninha extra seria bem vinda, mas do jeito que o taxista se sentiu enjoado com o cheiro, não teve outra solução: gastou algumas horas passando produtos novos no estofado e secando o bendito. O cara teve de improvisar com o secador de cabelo da falecida mulher e umas três extensões de tomada, pois sua vaga no estacionamento ficava longe de uma tomada. É mole?! A vida e os acontecimentos não lhe davam trégua.
Augusto tinha de decidir seus próximos passos depois de confrontar o investigador Fábio Vieira. A certeza nas palavras dele, para o taxista, denotavam que sabia de algo. Depois do policial mostrar seu valor encontrando o carro e o nome do indivíduo que procurava, acreditava em sua perspicácia e que dificilmente ele sairia de sua cola. Agora, mais que nunca, necessitava de cautela.
Além do mais, onde está Ricardo? Aparentemente, sem dar sinal de vida. Outra preocupação de Augusto era o assassino chique aparecer pedindo mais uma corrida com risco de vida. Se ao menos o cara avisasse antes de ligar o taxímetro, nosso motorista até poderia reconsiderar. Mas até isso lhe é negado.
Quando a noite caiu, o estofado secou e o cheiro de detritos alimentícios mal digeridos desapareceu, o sedan branco voltou a rodar. Ah, seus detalhes são azuis e tem aquela bendita plaquinha em cima escrito "táxi". Durante a noite, Augusto acende a luz interna do adereço.
Mais uma vez, Augusto para no ponto de táxi das barcas em pleno horário de rush. David estava lá, no carro a frente do seu na área dos táxis.
- Fala, Guguga! - exclamou David.
- Não me enche, David... - disse Augusto, bisbilhotando rapidamente o interior do táxi do colega - Me espanta ninguém ter derrubado aquele treco que mexe a cabeça perto do seu painel.
- Por quê?!
"Porque é um porre essa merda", pensou Augusto. Desistiu de dizer aquilo pouco antes das palavras ousarem deslizar para a ponta de sua língua.
- Por nada... Muito movimento hoje? - indagou ele.
- Durante o dia só o de sempre! Levei uma galerinha pra Piratininga, pessoal agitado... Cantaram até aquelas músicas de ônibus, de passeio de escola sabe. Só que no táxi. - respondeu David.
- Deve ter sido divertido.
- Eu fiz umas barbeiragens pra assustá-los e quase ganhei uma multa!
- Os guardas de trânsito não nos deixam dar uma lição nessa molecada mesmo... Ôh Gilberto, ouviu essa?!
Gilberto era um homem negro, alto e ombros razoavelmente largos. Uma barriguinha de chope proeminente, barba grisalha e careca. Rotineiramente ele deixava os primeiros botões da camisa aberta, devido ao calor niteroiense. Seu carro estava à frente do táxi de David.
- Ouvi, meu chapa! Num pode, né?! Muita molecagem... - disse Gilberto, com voz grave.
Ao longe, ecoou o som de mais uma barca chegando ao terminal. Àquela altura, faltava pouco para o local despejar todo tipo de gente que chegava do outro lado da Baía. Sempre o mesmo corre-corre, não importando o horário do dia. Augusto andou nesse modal poucas vezes por enjoar fácil com o balanço nas águas. Na barca, Guguga assume o papel da criança que vomita e ainda deixa o ônus no ânus de alguém. O dele que não era.
Pelas suas contas, em pouco tempo teria um passageiro para si. Enquanto pensava, Kennedy - o primeiro da fila - recebeu um e correu para o abraço. O próximo era Gilberto, depois David e finalmente Augusto. Com os colegas atentos na saída do terminal, ele teve alguns segundos para pensar em seus próximos passos depois do dia puxado, turbulento e até fedorento. Rodaria uma vez mais e ao término da viagem tomaria sua decisão.
Gilberto recepcionou um casal jovem e partiu rápido em seu Santana azul de detalhes brancos e o letreiro superior já aceso. David não teve de esperar muito e, com seu jeito tonto e piadista, recebeu um homem negro bem vestido que o aceitou como condutor. "Pobre passageiro", pensou Augusto.
Nosso taxista reparou que um casal branco cheio de malas se aproximava. Eu disse "branco", né?! Com um sol para cada um no céu, eles estavam vermelhos. Trajavam roupas claras e uns chapéus bem incomuns. O homem, alto, capitaneou as conversas com Augusto Seixas.
- Eu não falar português muto bem. - disse ele, com sotaque arrastando um "r" enrolado.
O motorista que teria sua vez em seguida fez uma cara azeda, colocando pouca fé que a viagem dos gringos vingaria. Augusto, que não sabia falar inglês, acenou positivamente com a cabeça e esperou o próximo movimento dos turistas.
- Nós querer ir esse hotel. - disse a mulher, assumindo a dianteira e mostrando o endereço no mapa do celular.
O taxista reconheceu o local e fez um sinal de positivo para o casal. Animados e com a ajuda do motorista, colocaram as bagagens no porta-malas e em seguida entraram no banco de trás. Ao motorista seguinte, Augusto mostrou o dedo feio antes de embarcar e não se atreveu a visualizar a reação, nem pelos retrovisores.
No caminho até a orla de Icaraí, por onde passava todo santo dia, passou pela praça de Cantareira, em frente à Universidade Federal Fluminense. Viu de relance alguns grupos confraternizando. Imaginou que muitos seriam universitários e que, se tivesse oportunidade, não deixaria a filha ficar ali. O pensamento dele tinha um "quê" de conservadorismo. Pelo que muito ouvira dos colegas, tal local era reduto de depravação a céu aberto. Os passageiros olharam embasbacados pela janela.
Adiante, sob a iluminação pública alaranjada, Augusto manteve sua concentração na pista. Curva para lá, para cá e desembocaram no caminho que para ele era o de sempre. A mulher, à direita no banco, tratou de tirar fotos da vista com o Rio de Janeiro ao longe. Naquela vista congelada, as luzes da cidade apareceriam bem borradas.
Sem dar muita bola à nacionalidade ou a qualquer curiosidade que tivesse sobre os dois, encerrou a viagem no local pretendido. Ajudou-os a desembarcar e a retirar as malas, cujo funcionário do hotel tratou de levar para a recepção. E o pagamento pelo percurso foi de acordo com o taxímetro, sem muitas complicações. Afinal de contas, a matemática se assemelha a uma linguagem universal.
Augusto queria se despedir com a frase "vocês chegar hotel", mas ele riria sozinho da sua bobice. Talvez fosse cafona para ele. Talvez ele se parecesse com o David dessa forma.
O taxista sabia que o tempo era curto e não poderia pensar muito. Com poucas opções, ele sacou o celular do bolso, procurou o número de Ricardo e ligou. Não era do feitio de Augusto esperar e não era do feitio desse antigo passageiro ser rude e não atender.
Ricardo atendeu e, antes que pudesse balbuciar qualquer coisa além de "Alô, Augusto?", ouviu de Guguga:
- Preciso conversar com você.
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Luzes da Cidade
General FictionHistória focada em noites diversas da vida de Augusto Seixas, um taxista niteroiense. Ele nada mais é que um humano como todos nós, com sua história e experiências únicas. Seus segredos, guardados a sete chaves, talvez falem melhor que ele quando a...