Terceira Noite - Só a Carcaça

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Em uma grande sala com um preponderante amarelo meio encardido estava Augusto, sentado em frente a uma mesa com computador, um porta-trecos e dois copos d'água: um para o taxista e o outro para o policial que o convocara, mas não estava lá nesse momento. Na mesma sala havia outros policiais, mas não o suficiente para ocupar todas as estações de trabalho. Um mal do plantão noturno.

O falatório dos policiais não o incomodava, tanto que, quando o investigador que o chamara chegou, percebeu a "martelada" com a cabeça que Augusto estava prestes a dar na mesa.

- Meu amigo... – começou o investigador, em voz alta – Trouxe um cafezinho pra te dar uma animada. E a mim também, claro!

- Ah sim, claro... – respondeu Augusto – Sempre bom.

- Você parece bem cansado. Tem trabalhado bastante?

- Ultimamente não, mas hoje fiquei praticamente de chofer de uma moça bem patrocinada... Não tive como não cansar.

- Ainda é segunda-feira, meu amigo! Relaxa pra eu falar o que tenho pra você.

A calma excessiva do investigador o incomodava com tamanha enrolação.

- Seu Augusto – começou o investigador – Lembra o que o senhor me pediu há dois meses? Veio abrir uma queixa sobre um determinado motorista e só tinha alguns detalhes sobre o carro...

- Não tenho como esquecer. – respondeu Augusto, ríspido.

- Encontramos um veículo que bate com a descrição.

Imediatamente, o rosto do taxista empalideceu.

- Vocês conseguiram isso?!

- Não foi nada fácil... Como vê, levamos esse tempo todo para encontrar exatamente esse veículo. Devo admitir que fiquei comovido com sua história.

Augusto não sabia se agradecia ou não pela comoção.

- E o que vão fazer agora? – indagou Augusto.

- Vamos buscar informações de compra e venda do carro, esse tipo de coisa... – respondeu o investigador, despreocupadamente – Isso pra saber se o dono dele ainda é o mesmo.

- E se ele for o mesmo?

- Podemos intimá-lo a depor.

O sangue do taxista começou a ferver e ele optou por observar a escuridão líquida em seu copo de plástico, antes de tornar a falar.

- Me desculpe, investigador – começou Augusto – Mas seria essa a melhor atitude?

Intrigado, o investigador demonstrou não entender o motivo da pergunta.

- Como assim "melhor atitude"? – indagou o investigador – Essa é a lei. E eu, como representante dela, não vou passar por cima com um mero suspeito.

- Ele é um criminoso! – disse Augusto, levantando a voz.

- Ele é inocente até que se prove o contrário! – esbravejou o investigador – Tão inocente quanto você. Baixa a bola, amigão! Baixa tua bola que aqui não é casa da mãe Joana, porra!

Por um instante, toda sala silenciou.

- Fica tranquilo, Fabão! Fica tranquilo – disse outro investigador.

O investigador que ajudava Augusto, Fábio Vieira, recuperou a compostura e respirou fundo antes de prosseguir. Tenso, o taxista aguardou seu intercessor se acalmar.

- Escuta – começou Fábio, em voz baixa – Eu tô tentando te ajudar, de verdade! Acredito que você se fodeu por causa de terceiros, mas não posso jogar isso tudo pro alto e te ajudar em primeiro lugar. É necessário que eu siga algumas REGRAS. Entende?

O telefone da mesa de Fábio toca e ele, imediatamente, o atende. Ouvindo atentamente quem o ligara, fez sinal para que o Augusto o aguardasse. Com a mão ele sinalizou: um minuto. Enquanto o investigador falava ao telefone, Augusto tomou todo o café em seu copo para acordar um pouco.

- Então – começou Fábio, retornando o telefone ao gancho – Isso vai levar um tempinho ainda. E eu não vou deixar você encontrá-lo pra descer o cacete. Há uma possibilidade remota do dono não estar dirigindo naquela noite e...

- Ser outro desgraçado. – concluiu Augusto.

- Sim. Há a possibilidade de quem você procura não ser, necessariamente, o dono do carro.

- Eu só quero justiça, investigador. Eu só quero justiça.

- E ela será feita, no seu devido tempo... Eu garanto. 

- Obrigado. – disse Augusto, ensaiando uma despedida.

Ao apertarem as mãos, Augusto sentiu uma modesta aura de luz envolver o investigador, algo que devia ter milímetros de espessura. Enquanto o agente da lei sorria, o taxista sabia que, mesmo um pouco, as palavras que ouvira o inspiraram confiança e fortaleceram, levemente, seu empenho em ser mais paciente. No mais, nada entendeu.

- Algo errado, seu Augusto? – indagou Fábio.

- Não, não! Tá tudo bem. Muito obrigado por sua ajuda. – respondeu Augusto.

- Não se preocupe em agradecer... Caso se lembre de algo mais daquele dia, me procure.

- Com certeza.

Saindo do prédio da polícia civil, uma das edificações de clássica arquitetura mantidas pela prefeitura na Avenida Amaral Peixoto, Augusto caminhou em direção ao seu táxi que estava estacionado um pouco adiante – em zona proibida, porém com o aval de Fábio, avisando que não demoraria muito tempo.

O taxista abre a porta de seu carro e senta no banco do motorista. Pelo para brisas dianteiro, ele olha para o alto e as janelas acesas, até que percebe as luzes se moverem para cima. Estava confuso, pois o carro estava parado no mesmo lugar. As luzes das janelas que passavam por sua visão se transformavam em pingos de luz que subiam, numa garoa reversa. Os pingos de luz subiam cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido...

Náusea.

Talvez fosse fruto do cansaço ou algum distúrbio bizarro, mas o tato lhe escapava. O corpo suava frio e os olhos começavam a fechar, impulsionando-o ao desmaio.

Desacordou, com a testa pressionando a buzina e acionando os mais próximos e curiosos. Nessa altura da vida, Augusto estava só a carcaça.

Luzes da CidadeWhere stories live. Discover now