Fez, Marrocos. 2014
Um velho senhor, cujos cabelos há muito haviam caído e a pele se enrugado durante a batalha contra o tempo, observou os estabelecimentos abrirem e comerciantes gritarem para atrair fregueses. Viu com atenção turistas se aproximando e vendedores barganhando o melhor preço para seus produtos.
No passado, pessoas de todas as nacionalidades passavam por sua loja: mercadores árabes das caravanas do deserto, engenheiros franceses, alemães e ingleses à procura de souvenirs para suas famílias ou soldados e mercenários à procura da fortuna. Hoje, porém, os turistas procuravam mais as ruas do Egito e cidades como Casablanca ou Tanger, fazendo seus negócios diminuírem aos poucos.
Sobrevivia pelas doações de seus vizinhos, que compravam no principal ponto da ladeira sem nome, ou pelas histórias contadas através de anos como um dos maiores pontos para aventureiros. Crianças do bairro amontoavam-se nos finais da tarde para escutá-las. Uma delas, no entanto, levou-as a sério demais.
O velho homem suspirou com a lembrança do passado.
Sentado diante da vidraça, observou o vai e vem das pessoas; os homens conversando em frente ao bar mais frequentado, entre a fumaça dos cachimbos; as mulheres escolhendo as melhores bijuterias e tecidos. Mas, foi o soar do sino e a visão de conterrâneos entrando em uma mesquita que o despertou daquela melancolia.
Suspirou profundamente e, então, pegou o tapete de dentro da loja, ajoelhou-se e rezou. Sempre pedia a prosperidade da ladeira e de seu mercado, porém naquele dia gostaria de vê-lo novamente, principalmente depois das notícias não muito boas que chegaram do velho mundo.
No entanto, somente quando o relógio de parede marcou três horas da tarde, suas preces foram ouvidas. Um rapaz moreno com um leve topete parou diante de sua vidraça. Ele desabotoou os primeiros botões da camisa polo e bateu na calça branca, como se quisesse tirar a poeira das ruas. Carregava debaixo do braço um chapéu panamá amassado e, no pulso, um relógio falsificado que reluzia com o sol.
Escutou palavrões em árabe de transeuntes incomodados com o brilho, mas o visitante não ligou. Sorriu antes de entrar, para a alegria do velho vendedor.
— Olá, Afif. — O rapaz repousou o chapéu na bancada. — Desculpe...
Afif colocou uma placa, onde se lia fechado, na porta da loja e se voltou para o visitante. Fazia quase quatro anos que ele não o via, o menino maltratado pela família rica que vinha ouvir suas histórias e brincar com crianças de mundos e religiões diferentes.
Lágrimas caíram de seu rosto calejado.
— Ignácio!
Ele o abraçou entre os braços firmes, era o único que acreditou fielmente nele em todos aqueles anos.
— Pensei que tinha morrido. — Recompôs-se enquanto se forçou a dar passos lentos para trás do balcão. — As histórias...
— São apenas isso. — Ele tentou gargalhar, mas a risada saiu seca. — Estou aqui de férias e prestes a escutar mais um conto de meu velho mentor.
— Você já escutou mais de um milhão de vezes tudo que eu tenho em meu arsenal, moleque. — Ignácio deu de ombros, tentando parecer indiferente, mas Afif sabia que seu ex-aluno era o mestre do cinismo. — O que foi dessa vez? A procura de mais problemas para se meter?
— Na verdade, eu só quero curtir um pouco e escutar algumas das mais ocultas. — O rapaz arqueou as duas sobrancelhas algumas vezes. — Sei que tem um livro ou outro por aqui que conta algo que eu ainda não sei.
Afif balançou a cabeça em negação e suspirou. Ele tinha uma para contar e estava ficando velho demais para ser o guardião daquele segredo obscuro.
— Apenas uma... — Foi lentamente até uma das prateleiras e retirou um livro cuja capa dava sinais de desgaste. — O que você sabe sobre a conquista espanhola das Américas?
— Sanguinária, brutal, com exemplos de heroísmos entre grandes tragédias. Típica conquista. Por quê?
— E se eu lhe dissesse que a história foi maquiada, manipulada para esconder verdades que, se viessem à tona, chocariam o planeta e mudariam tudo o que conhecemos como Terra?
— Eu diria para me dar o haxixe que estão vendendo aqui na rua. — Ignácio apontou para o bar adjacente à loja de antiquários.
— Longe disso, meu menino. — Afif abriu o livro em uma página que mostrava a ilustração de um portal etéreo. Até poderia pensar que o próprio livro fosse a porta para outro mundo se a tinta brilhante não estivesse desgastada e a folha, amarelada pelo tempo. — Tudo o que aconteceu nas Américas foi para uma única coisa.
— O quê? — O jovem inclinou-se sobre a bancada, já fascinado pelas palavras daquele velho senhor.
— Abrir o Portal das Almas e trazer o senhor que as rege para o mundo humano. — Afif empurrou o livro para seu aprendiz. — Porém a chave está perdida, Cortez a escondeu.
— Oh... — Exclamou o rapaz alisando com cautela a página lisa do livro envelhecido. A escrita, o papel, tudo era tão delicado... — E vai me dizer que até hoje ninguém nunca a encontrou?
— Não zombe, menino. Que Alá nos tenha piedade se algum dia essa chave cair nas mãos erradas. Pois ele não terá.
— Você sabe vender bem essa história... — Ignácio fechou o livro e olhou a carteira. — Quanto pelo exemplar?
— Nada. — Afif negou com um sorriso terno. — Tome cuidado. Se um dia encontrar essa chave em suas viagens, a destrua. Ninguém deveria ter esse poder.
— Yeah, Yeah. — Ignácio colocou o livro debaixo do braço, oculto pelo chapéu amassado, e acenou um adeus para o velho. — Obrigado, Afif.
Aquele senhor de idade teria algo a mais para adicionar em suas preces diárias: que o mundo não acabasse pela curiosidade mórbida de um aventureiro azarado.
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Portal das Almas [Degustação]
Adventure"A estrutura da história foi o que mais me chamou a atenção. A forma como as peças são apresentadas está muito perto dos livros de autores consagrados. Uma das melhores obras que li no Wattpad. Me lembrou da escrita de Dan Brown." - Tay Alves, aval...