O limite

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Aquela não era a primeira vez.

E em verdade estava muito longe de tal realidade. Era mais uma noite naquela sala pequena, impregnada de saquê e fumaça desde o chão com o tatame bem encaixado, até os ínfimos detalhes dos papéis de arroz ricamente detalhados que compunham as paredes e portas de correr, e davam a privacidade necessária para que aquela jogatina ocorresse sem problemas, afora aqueles que costumava causar normalmente, como acusações sem fundamento de roubos, algumas brigas que terminavam com pessoas machucadas em determinadas situações, mas que no dia seguinte estavam lá novamente para continuar alimentando aquele ciclo vicioso.

Era como um respiro para mentes cansadas da labuta, fosse esta braçal, ou de cunho intelectual.

Havia aqueles que davam sorte, e se não o fizessem ainda assim sabiam quando parar com tudo, mesmo que com a tentação de ir mais uma vez, acompanhados pela falsa de esperança de que uma vitória de fato viria – que às vezes poderia acontecer -, mas outros, como um dos homens que só agora parecia cair em si e entender o que havia apostado, não sabiam como parar, nunca conseguiam ver o limite sendo ultrapassado, e mesmo que assim acontecesse, não sabiam quando chegar ao fim, mesmo que já não tivessem mais nada para apostar.

Dignidade, caráter. Palavras fortes, mas que não pagavam contas, muito menos apostas.

Alguns se aproveitavam disso, a partir de ameaças ou trocas de trabalhos e outros favores sujos para sanar aquela dívida, mas outros tinham uma forma distorcida de sentir pena de pessoas como aquelas, e nessa noite em específico, mesmo aqueles que estavam apenas preocupados com os valores nos bolsos de suas calças, se sentiram de alguma forma, incrédulos com aquela situação. Certas coisas jamais deveriam ser colocadas numa mesa de apostas, em nome da honra, do orgulho, e daquilo que jamais deveria ser ultrapassado, mas aquele homem se enquadrava perfeitamente na lista dos que nunca sabiam parar e apostavam tudo que não podiam; como ele havia feito.

Apenas ele e aquele homem, que havia ganhado todo seu dinheiro naquela noite continuavam jogando, enquanto os outros observavam; uns assustados, outros agradecidos por ainda ter um pouco de sanidade e reconhecer o momento de parar, outros achando aquilo um espetáculo digno de reprises. Ah sim, esses que sabiam perfeitamente quando parar enchiam os olhos com aquela derrota excepcional que o homem sofria.

Mais uma vez.

Ele já era famoso ali, e conhecido por sempre ultrapassar os limites, muitas vezes precisando ser carregado para fora da casa de apostas antes que algo pior pudesse acontecer. Pois bem, aquela situação desastrosa finalmente tinha acontecido, era questão de tempo.

Os que faziam parte do grupo dos incrédulos baixaram as cabeças em negação, alguns sentindo realmente dó, não necessariamente daquele homem, mas sim do que ele havia apostado. Suas mãos tremulavam enquanto deixava as cartas caírem após ser vencido, os olhos completamente vermelhos derrubavam lágrimas silenciosas, como se apenas agora estivesse arrependido do que fizera, ainda que inebriado pelo álcool e a fumaça do tabaco forte.

Nem ao menos era ele quem ganhava o dinheiro que perdia noite após noite, longe disso. Não era ele a esposa agoniada que via a família definhar pelas mãos de quem deveria zelar pelo bem-estar de todos, que dia após dia perdia um pouco mais do que tinha, físico e também sua essência, chegando ao ponto de entrar em desespero quando soube que ele havia apostado a própria casa, por sorte não conseguindo terminar aquela partida, assustando aos que estavam na mesa consigo.

De certa forma havia alguma moral entre os jogadores. Famílias eram sagradas para eles, os que tinham a mente estável. Infelizmente nem todos eram assim. E um dia o limite ultrapassado seria tanto que não poderia ser revertido, não teria como voltar atrás, oh não, isso deveria ter sido feito antes, quando ainda assustava aqueles dez homens com suas palavras incertas, mas decidido a ir em frente com aquilo.

ApostadoOnde histórias criam vida. Descubra agora