Kitty

167 19 1
                                    


Kitty

Observar de longe a felicidade dessas famílias se tornou fácil para mim, rara são as vezes que sou convidada para esses encontros Espécies e companhia. Confesso que gosto de estar entre os filhotes como Forest, o Sal e principalmente o Luca, aquele mini humano se tornou de fato alguém extremamente importante para mim. E nesse momento ele está no meio de uma dessas confraternizações que sua mãe está ensinando aos Espécie, vejo o quão alegre ele está entre nós. Brass é um macho feliz, assim como todos os acasalados, isso faz deles estúpidos e fracos.

Os anos naquelas instalações, sendo abusados, quebrados e remontados da maneira que os humanos queriam e quando queriam, marcaram nossos corpos, nossos sentidos e nossas mentes. Para alguns Espécies até suas almas eles fizeram questão de desmontar, e poucos foram os que conseguiram remontar. Eu não fui uma delas.

Filhotes são os únicos que me querem por perto, parece que algumas fêmeas não gostam que eu fique próxima deles, e não costumo me importar quando não querem me ter por perto, geralmente sou eu que expulso as pessoas. Mas, eu gosto dos filhotes, de verdade. Mesmo que não acreditem.

Eu já tive alguém, não chegamos a nos tornar companheiros, mas tivemos uma ligação forte. Na primeira instalação que fiquei não separavam os machos das fêmeas, então minha cela era de frente a dele. 356, o único macho por quem chorei. Passamos um bom tempo "juntos", ele me ensinou como falar palavras difíceis, e ler as folhas que roubava das pranchetas dos humanos que nos testavam.

356 contava histórias engraçadas, ele veio de uma instalação diferente, e me contava história de como fazia caretas para as técnicas e ganhava mais carne que os outros, aquele macho me fazia sorrir imitado os humanos a nossa volta, e conversava comigo quando eu tinha sonhos ruins. Ele gostava que meus cabelos eram mais longos que os dele.

Ele era felino como eu, e eu ainda sinto o cheiro dele quando fecho os olhos a noite. Consigo lembrar do som de seus rugidos, do som que seus ossos faziam quando os humanos os quebravam, do som que vinha da sua cela quando ele tinha dores a noite. Mas, não consigo lembrar do formato do seu rosto. Esqueci qual era a cor dos seus olhos, e não sei se ele tinha cabelos claros ou escuros, nem onde ficavam as cicatrizes. Mas o cheiro do seu sangue, eu jamais vou esquecer.

Mercille destruiu minha mente e meu coração, e desde que fui libertada tento preencher o buraco, as vezes causando uma disputa entre os machos porque quando eles brigam entre si, os sons são parecidos e quase sinto o que sentia quando o 356 lutava em sua cela contra os guardas que o buscava para os testes. Me levaram para ele uma vez apenas, e foi a única vez que quis estar numa cela com um macho, mas ele estava com a droga de reprodução e não se lembrou depois, mas eu nunca esqueci. 356 perdeu seus sentidos e quase não o aguentei, o macho foi tão violento que precisei ser carregada. O ignorei por uma semana depois daquilo, e depois daquele teste, o levaram embora por três dias, e quando voltou ele passou a me ignorar.

Numa noite, ele reclamava de dor e me disse que foi testado algo novo nele e que machucou muito, uma humana o fazia assistir todos os testes que faziam comigo, ele via quando os machos me tocavam, quando os humanos me batiam. Ela nos punia por nos importar um com o outro, e por isso ele parou de falar comigo. 356 começou a adoecer por causa das drogas testadas. Até que um dia eu estava no corredor sendo escoltada de mais um teste, e vi humanos limpando seu espaço. Seu sangue escorreu até o meu, e eu fiquei sentada no chão ao lado da mancha de sangue dele, encarando a cela do 356 vazia.

Eu quebrei de vez naquele dia, nada do que eles faziam com meu corpo doía mais. Ninguém mais conversava comigo quando eu tinha sonhos ruins. Ninguém mais imitava os humanos e nem roubava folhas para ler para mim. E sempre que tinham os testes, minha cabeça fervia tanto com as drogas, que o rosto dele foi sumindo devagar. Foi quando aprendi que se seus inimigos sabem suas fraquezas te derrotam, depois do 356 não permiti ter nenhuma outra fraqueza.

E hoje seja em Homeland ou na Reserva, eu ainda me sinto como naquela cela, encarando a cela do 356 vazia.

Permitir estar entre os filhotes foi algo que não notei que fazia, até começar a sentir falta de ter a companhia deles. Olho para eles e sei que jamais terei algo puro e bom como um filhote, e pensar em humanos como os da Mercille capturando um deles me deixa com tanto medo. Estou começando a ser fraca e tola novamente, e não posso permitir que ninguém saiba. Nem mesmo Espécies.

E por isso me questionei se devo ou não entrar nessa casa e entregar o presente que Luca me pediu. Melhor voltar amanhã, dizer que esqueci e entregar numa sacola normal. Assim posso dizer que não ligo para essas festas bobas e ninguém nota.

"Kitty" ouvi a voz do Luca enquanto ele corria para mim, tentei ignorar os olhares em minha direção, e foquei no filhote que sorria. "Sabia que você não ia esquecer. Você demorou, vem" Luca segurava meu casaco me puxando para dentro, e eu tentava esconder o embrulho da vista dos outros "Faltava só você, agora posso cortar o bolo. Sem todos meus amigos aqui, não teria graça."

Olhei em volta, Luca me soltou em frente à mesa com o bolo e doces, estava ali com a gente, além de seus pais, Sal, Forest e os pais deles. Luca queria somente seus amigos, e eu era um deles. Enquanto cantavam para ele, comecei a dar passos para trás, esperei cantarem e entreguei o embrulho, inventei uma ronda e sai o mais rápido possível.

Meu peito começou a doer muito, aquele maldito buraco começou a doer muito. Eu estou me permitindo ser fraca, e isso não poderá mais acontecer. Sem pensar muito, corri para a CC principal da Reserva e pedi que me ligassem ao Justice ou Brawn. Só tinha uma maneira de ficar longe o bastante e não sentir mais nada que me enfraqueça, e quando fui atendida por Brawn exigi ir embora. "Me tire da Reserva".

FIM...?

Novas Espécies - CONTOSOnde histórias criam vida. Descubra agora