Intermédio: Sun Qing

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  O sangue no chão cimentado é como se já fizesse parte do cenário de Hong Kong, uma coisa que eu via praticamente todo santo dia no meu ramo de trabalho. O corpo da mulher estava ali, estirado, garganta cortada, barriga aberta, e todas as suas entranhas jogadas para fora, como se um animal selvagem tivesse a atacado e se alimentado da sua carne. Tamanha brutalidade já enchia a minha cabeça de dores há meses, e nem o cigarro mais me acalmava.

  Por falar em cigarro, ele estava entre os meus lábios, e com uma breve tragada, eu soltei a fumaça após alguns segundos, fechando meus olhos e sentindo a garoa gelada cair no meu rosto. Aquele beco fedia, mas era uma cena de crime, e eu precisava estar lá.

  As poças de água se formavam no chão, e dali, o reflexo do giroflex das viaturas podia ser visto. Várias delas estacionadas ao redor do local, com uma enorme faixa amarela holográfica impedindo qualquer curioso... Mas sinceramente, no meio da madrugada, se tratando de apenas mais uma puta morta, ninguém viria dar atenção.

   — Detetive Qing. — Ouvi o murmúrio familiar atrás de mim, e de repente, um homem parava ao meu lado, trajando seu sobretudo escuro, observando o cadáver da mulher com mais atenção do que até mesmo eu. 

  — Yan. — Assenti com a cabeça em cumprimento, voltando a olhar o corpo. — O que está fazendo aqui? Pensei que estivesse em outro caso.

  — Só estou de passagem. Curiosidade, digamos assim. — Ele respondeu, cruzando os braços, enquanto eu me permiti tragar o cigarro mais uma vez. — Mais uma, né? Foram quantas esse mês? Quatro?

  — Com essa, sete. — Soltei a fumaça novamente, suspirando. — Mas se somar dos últimos três meses, acho que dá pra totalizar ao menos umas trinta.

  — Trinta mulheres mortas em três meses. — Yan riu, negando com a cabeça. — Estou surpreso que isso ainda não virou um escândalo nacional.

  — Não é como se o Partido fosse permitir, além do mais, ninguém se importa com um bando de putas mortas. — Respondi diretamente, dando de ombros.

  — Você se importa. — Ele afirmou, me observando com o canto dos olhos. — Está no caso, afinal de contas. —

  — É meu trabalho. Apenas isso. — Desci os olhos para o cigarro entre meus dedos, quase acabando. A cabeça só doía cada vez mais conforme eu pensava sobre isso. Naquele momento, o celular em um dos bolsos da minha capa vibraram, e eu tateei a mesma, sentindo o objeto ali. O agarrei com a mão, ligando a tela, observando o número desconhecido que me ligava. ''Desconhecido'', na verdade, pois eu sabia bem de quem se tratava. — Com licença, Yan. — Murmurando, me afastei dele e do resto dos policiais, atendendo a ligação.

  — Boa noite, detetive Qing. — A voz ecoou pelo celular... Aquela voz. Sensual, e amedrontadora ao mesmo tempo. Suspirei, e engoli seco, assentindo com a cabeça.

  — Boa noite, senhorita Zhao. — Respondi, tentando manter a postura. — Peço desculpas. Eu ia notificar a senhora, mas... Não tive tempo, infelizmente. — Afirmei para a mulher.

  — Não tem porque se desculpar, eu já fiquei sabendo. — Ela dizia de forma serena. — Quem foi dessa vez?

  — Eu ainda não confirmei a identidade da vítima, mas... Com certeza é uma das suas garotas. — Meus olhos correram até o cadáver caído ao chão. Naquele momento, ouvi Zhao soltar um pesado suspiro através da ligação.

  — E você não tem a menor ideia de quem possa ser? — Ela perguntou novamente com seu tom sereno, mas dava pra sentir um toque ameaçador no fundo. — Muitas das minhas garotas morreram nesses últimos meses, detetive Qing... E como deve imaginar, isso está afetando o meu trabalho. — Afirmou. — E se continuar dessa forma... Vai acabar afetando o seu.

  — Eu entendo, senhorita Zhao. Será resolvido. — Mantive o tom firme, apesar de não ter certeza de absolutamente nada.

  — Encontre quem está matando as minhas garotas, detetive. — Ela concluiu. — Boa noite. — Em seguida, Zhao desligou o celular, sem delongas. Suspirei pesado mais uma vez. O temor tomava conta do meu corpo... E eu sentia que não tinha pra onde fugir. Por trás de suas doces palavras, encontravam-se ameaças veladas, e qualquer policial inteligente o suficiente em Hong Kong sabe onde deve, e não deve cutucar com a vara. Eu precisava resolver isso, e rápido.

Hong Kong 2189Onde histórias criam vida. Descubra agora