"Já não me preocupo se eu não sei por que
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você"
(Legião Urbana – Quase sem querer)
I: A explosão da nossa estrela massiva
Quando uma estrela massiva explode, forma-se um buraco negro. A primeira,
incandescente e brilhante, dá lugar a um vórtice negro e devastador. E quem poderia
imaginar? Por acaso é dever dos homens cogitar que, ao pé da bela rosa, resida um
espinho pontiagudo e assassino?
Foi mais ou menos assim, de um sentimento bonito e fulgurante, que se iniciou a
história das nossas ruínas. Veja, leitor, éramos apenas dois colegiais. E o que há na
cabeça dos colegiais? Certamente, sequer você, com todas as suas virtudes incontáveis,
colocaria sua mão no fogo pela sua versão de 15 anos. E, no entanto, lá estávamos nós.
Eu, no auge de minha inocência, estava louca por me apaixonar. Passara todos os anos
até ali recusando convites e pedidos de garotos em uniformes bem passados, cheios de
gel e manias de rei. Era convicta de que ainda não estava pronta, que não me cabiam as
coisas do coração, pois era só uma criançola. Porém, naquela virada de ano, sob o céu
negro iluminado apenas pelos fogos, jurara a mim mesma estar aberta a possibilidades,
uma vez que já ansiava, havia algum tempo, por desvendar os mistérios da vida.
Naqueles meses iniciais do meu primeiro ano, sentia-me capaz correr e gritar ao vento
que me batia no rosto o quanto desejava amar.
Na coordenada oposta estava ele. Cheio de cicatrizes, de chagas mal curadas do coração
e uma garota que não lhe saía da cabeça. Essa fora, um dia, seu grande amor, como ele
confessaria mais tarde. No entanto, já naquele início de ano letivo, pressentia a
possibilidade de ser descartado, como o foi alguns meses depois quando princesinha
começou seu namoro com um Don Juan loiro e abastado.
Era uma aula de aprofundamento em matemática. Somavam-se 6 alunos. Eu na primeira
carteira, os cabelos soltos e a expressão cansada de quem se mantinha de pé apenas por
efeito de cafeína, anotando tudo com meu jeito metódico. Calada, envergonhada só por
existir. O meu amor de pé, ao lado do professor, ora rabiscando suas anotações, ora
transpondo-as na lousa, pedindo opiniões, explicando. Andava de um lado para o outro.
Tinha um ar expansivo; um vendedor nato.
Nossos olhares cruzaram-se, pela primeira vez, em algum lugar entre a lousa e meus
cadernos. Ele notou minha expressão de confusão. Veio até mim a passos calmos,
mantinha sempre a expressão serena de quem tem o controle da situação. Você
entendeu? perguntou. Fiz um círculo no papel, englobando parte da conta. Eu não
consigo ver de onde vocês tiraram o raio menor. Nós só temos a corda da
circunferência, isso não nos dá nem raio, nem diâmetro. Ele sorriu. Tem razão, não
ficou claro. Você precisa desenhar um triângulo dentro da circunferência maior, assim.
Vou desenhar na lousa, veja se entende. E foi, voltando-me as costas.
Eu gostava especialmente de vê-lo de costas. Quando se vê alguém assim, por trás, você
não interage com a pessoa em questão. Não lhe pode dirigir um olhar à face, ver as
expressões que faz. Não raro, essa pessoa nem sabe que está sendo observada. Tudo o
que você tem são a figura diante de si e seus próprios pensamentos, sentimentos, seu
amor. Se ousar permitir que seu coração lhe diga algo nesses momentos, ele será
terminantemente sincero, pois não precisa agradar a outros; ninguém te vê, só você vê
alguém. Uma visão privilegiada; tomada de ar na sacada da vida.
Naquela época, eu não sabia, mas o achava lindo de costas.
II: Matemática, licenciatura
Afonso, que ministrava a aula de aprofundamento, era um professor apaixonado. Amava
o que fazia e amava mais aos seus alunos. Era como Sidney Pontier em "Ao mestre com
carinho"; estava na escola para transformar a vida de todos. Emocionava-se facilmente,
como bem constatei naquele ano.
Professor, podemos ter aula no auditório hoje? Por favor! Implorei-lhe, com cara
manhosa. Naquele dia, ele completava 36 anos. Já desconfiado, acenou positivamente
com a cabeça, os olhos castanhos diminuídos pelo largo sorriso. Fomos todos
carregando-lhe pelas mãos ao longo do corredor, uma pequena multidão de afeto,
aglutinada em volta do nosso homenageado choroso.
Ao meio do caminho, a coordenadora alcançou-nos, dirigindo um sorriso e dizendo ao
Professor Afonso o quão sortudo era pelos tantos filhos que encontrara ali. Você já
sabia disso, né? Você já sabia de tudo e não me contou! Acusou-a ele. A esse ponto, as
lágrimas já lhe escorriam pelas faces e nós nos segurávamos para não as vertermos
também.
No auditório: bolo, guaraná e uma decoração improvisada. Lousa enfeitada com
apelidos carinhosos escritos em canetão preto ou azul, bexigas aqui e acolá, salgadinhos
sobre a mesa. Roubáramos algumas mesas de plástico da cantina, mas isso não
descartou o uso das nossas próprias carteiras. E que delícia! Que dia mágico, quantos
abraços e quantas gargalhadas. Registramos tudo, tudo.
No entanto, não cabe a este conto exibir apenas o óbvio, a apresentação final, o show de
mágica. Não, não. Se esperas isso, então fechas o arquivo. Aqui, espiaremos sempre o
que houve por trás das façanhas.
III: Por trás da façanha
Aquela data festiva também foi a primeira vez em que saímos juntos, embora não
sozinhos. Abel era o implantador da ideia da festinha, o que não era nada surpreendente.
Afonso era seu professor favorito e ele, possivelmente, o aluno preferido do mestre
naquela época.
Duas horas antes da surpresa, fomos debaixo do sol do meio dia: eu, Abel e Higor.
Higor, que, na ocasião, ainda era afeiçoado a Abel. Fizemos uma rápida expedição pelo
mar de asfalto que separava a escola do supermercado mais próximo, o dinheiro da
vaquinha amassado entre os dedos.
Foi a primeira vez em que o vi fora dos muros da escola. A primeira vez em que me fez
rir até a barriga doer — já que nossa missão fora nobre, mas nada séria. A primeira vez,
ainda, que o ouvi falar de algo que não fossem números, nossa órbita comum.
Então, está me dizendo que é de direita, Lila? De direita?? Logo você, que eu achava
tão inteligente! Eu que já começava a gostar de você! ele levou a mão à cabeça,
desamparado. Encostado no carrinho, atrás de nós, Higor ria-lhe das caretas. Estávamos
na fila para o caixa, as guloseimas pendendo ao nosso lado, insinuando-se
desavergonhadamente.
E eu não achava que você fosse assim, intolerante. Estávamos ambos enganados, pelo
visto. respondi, fazendo-lhe arquear as sobrancelhas. Intolerante? Está de brincadeira?!
Você que chega toda boazinha e vai mostrando as garras depois, fascistinha! Rimos. Eu
contei que era feminista, ele me chamou paradoxal.
IV: O ponto
O ponto ao qual quero chegar — e os mais impacientes vibram! — é que, ainda naquela
minha primeira aula, já era inegável o olhar de sincera cumplicidade entre professor e
pupilo, embora se conhecessem havia apenas um ano. Afonso aparentava estar
legitimamente orgulhoso das explicações do garoto. Findadas essas, perguntou aos
presentes: O que acham? Já pode me substituir? E rimos e dissemos que ele já poderia
se aposentar e deixar tudo a cargo do outro.
Abel ficou exultante. Por isso, foi ali mesmo, entre aquelas quatro paredes e trinta
carteiras, que conheci a sua primeira faceta: Tinha um grande ego. Adorava a plateia,
os elogios, as palmas, os olhares e acenos positivos. E tudo bem. Que eu fosse, então,
seu mecenas. Patrocinasse cada anseio que lhe cutucava o coração, para que se sentisse
eternamente debaixo do holofote do meu olhar. Seria pouco para ver aquele sorriso
largo, de falsa timidez.
Sorri-lhe de volta. Ele notou.
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Ecos do último coração irracional
Historia CortaColetânea de contos e poemas dos mais variados temas e tamanhos.